terça-feira, 13 de dezembro de 2011

14ª Conferência Nacional de Saúde: o que a Carta de Brasília esconde

Por Bruna Ballarotti*. 

Após o término da 14ª Conferência Nacional de Saúde, quem não esteve lá tenta agora entender o que se passou, principalmente através da internet. Temos visto diferentes relatos da história, que são, claro, condicionados pelo lugar em que ocupamos nesse processo. Nesse sentido, trago aqui minha contribuição.

Minha expectativa em relação a 14ª CNS não era das melhores, por diversos motivos. O espaço institucionalizado do Controle Social do SUS apresenta inúmeras limitações. Os conselhos de saúde, que deveriam ser espaços para construção de uma democracia participativa, acabam muitas vezes se tornando mais um espaço viciado de democracia representativa, onde os conselheiros muitas vezes não falam por suas bases (quando essas bases existem), e onde a agenda é majoritariamente pautada pelos governos. Temos ali um espaço importante de lutadores e lutadoras do SUS, que acaba sendo usado como instrumento para legitimar as políticas do governo, não conseguindo assim, cumprir o seu papel de fiscalizador e formulador de políticas de saúde. Quem não discute os problemas estruturais do SUS (e da sociedade no qual ele está inserido) não consegue formular respostas a contento para os desafios da realidade.

O que está bastante relacionado com esse cenário é a conjuntura política brasileira. O Partido dos Trabalhadores (PT), que durante a década de 80 foi a grande referência para a esquerda brasileira (inclusive para os militantes da saúde), ao chegar ao poder, trazia a esperança em seus estandartes. Apesar da Carta aos Brasileiros e das novas alianças do PT, o sentimento geral era de que, após o SUS ter conseguido sobreviver à uma avalanche neoliberal na década de 90, finalmente se conseguiria avançar na implantação do SUS pra valer. Ledo engano. Em nome da governabilidade, Lula fez o que quis com a saúde, usou o Ministério da Saúde como moeda de troca durante o escândalo do Mensalão (quando cedeu o MS do PT para o PMDB), abandonou bandeiras históricas como a regulamentação da Emenda Constitucional 29. Esse processo gerou inclusive situações constrangedoras, como ver partidos que nunca defenderam uma saúde pública, como o DEM e o PSDB, defendendo a regulamentação da EC 29.

Esse novo cenário, do PT enquanto partido da ordem, acabou resultando na cooptação de diversos movimentos sociais. Isso se manifestava de forma bastante importante dentro do Conselho Nacional de Saúde, por exemplo, mesmo antes do presidente do CNS voltar a ser o Ministro. Apesar de ter se posicionado contra a Fundação Estatal de Direito Privado (FEDP) (rejeitada em massa também pela 13ª Conferência Nacional de Saúde em 2007), o Conselho já atuava como “chapa branca” na maior parte do tempo e das pautas, defendendo quase sempre as políticas do governo Lula.

Com a eleição de Dilma Rousseff para a presidência do país, o Ministério da Saúde, na figura do ministro Alexandre Padilha, retorna para o comando do PT. Padilha foi militante da saúde, e sua ascensão ao comando do MS foi recebida por alguns segmentos (notadamente o setorial de saúde do PT) com euforia. Sua eleição para a presidência do CNS chegou a ser descrita por alguns como o maior avanço do controle social no país (!!), ainda que fosse justamente o contrário.

Mas não podemos nos enganar, o Governo Dilma já mostrou a que veio - a linha desse governo é aprofundar o desmonte do Estado, e novas contra-reformas estão a caminho. O Governo do PT, que já defendeu a Fundação Estatal de Direito Privado como alternativa “pública” à privatização escancarada representada pelas Organizações Sociais (OSs), chega em 2011, na 14ª CNS, com outro discurso, no qual todos os tipos de parcerias público-privadas são bem vindas. O ministro declara que é “contra a privatização”, mas não considera administração via OSs uma forma de privatização. Foi nesse contexto em que chegamos à 14ª CNS.

A Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, que reúne dezenas de fóruns estaduais, movimentos sociais, sindicatos, entidades, projetos acadêmicos, etc, tem sido um instrumento aglutinador de diversos lutadores e lutadoras em defesa de um SUS 100% público, estatal e de qualidade, contra todas as formas de privatização, incluindo OSs, OSCIPS, FEDP, parcerias público-privadas, que estão espalhados por todo o Brasil. Chegamos à Conferência dispostos a fazer essa disputa, a politizar o debate, defender as vitórias contra a privatização que saíram das Conferências Estaduais, a agregar mais lutadores no processo de participação da 14ª CNS.

O início da Conferência foi marcado por alguns problemas organizacionais (tais como atraso e prorrogação da solenidade de abertura, a suspensão da Plenária inicial, que definiria o regulamento, a não retomada da Plenária inicial para privilegiar turno de programação cultural, etc) que implicaram na perda de um turno da programação. Se já era difícil acreditar que a 14ª Conferência terminaria (lembrando que a 13ª CNS, por exemplo, não terminou, mesmo com grupos que foram até muito tarde da noite), agora com um turno a menos a coisa ficava mais complicada.

O segundo dia de Conferência começou com o retorno da plenária inicial. Os convidados ficaram restritos a uma sala isolada, onde se comunicariam com as pessoas através de um telão, quando fossem chamados para tal, como numa videoconferência. Esses convidados, que tinham previsto no regulamento seu direito de pedir questão de ordem, tentaram fazê-lo, mas não foram possibilitados pela mesa, o que gerou bastante tensão, apesar da liberação da entrada dos convidados no plenário, que se sucedeu em seguida. Foi nesse contexto de tensão entre o plenário e a mesa (que apresentou dificuldade em conduzir de forma mais democrática os trabalhos) que houve agressões durante a plenária. 

Era apenas o início dos trabalhos na Conferência. Nesse segundo dia, os grupos de trabalho (GTs) aconteceram à tarde e foram até a Diretriz 2, de um total de 15. Ou seja, teríamos apenas o terceiro dia para dar conta de todas as outras 13 diretrizes do Consolidado Final. O quarto dia seria a plenária final. Apesar dos militantes da Frente terem atuado de forma a contribuir com os trabalhos, nessa noite já se começou a ventilar, por parte de pessoas ligadas ao governo, que a Frente tinha o objetivo de implodir a 14ª CNS (apesar de estar bastante claro para nós que, se alguém tinha implodido alguma coisa, até então, havia sido a própria organização da CNS). Segundo boatos, tínhamos implodido a Conferência, que não acabaria por nossa culpa. Dessa forma, o Governo seria obrigado a criar pelo menos uma “carta”, garantindo assim um documento final da 14ª CNS. Muito conveniente, não?

O terceiro dia começou com o desafio de dar conta de todas as discussões nos GTs, justamente para valorizar o processo que havia começado nas Conferências Municipais, passando pela etapas estaduais, e que estava em debate na etapa nacional. Na nossa análise, era importante também terminar essas discussões para não dar margem a “manobras” na plenária final.

Ao final do período da manhã, as propostas que defendíamos, contidas na Diretriz 5 (que versava sobre modalidades de gestão, sobre relação público-privado), já haviam sido aprovadas com mais de 70% dos votos de mais de metade do total de GTs, garantindo assim aprovação direto para o Relatório Final, sem nem necessidade de ir à plenária. A proposta que o governo e seus defensores mais priorizaram, aquela pela qual mais se organizaram para a disputa nos GTs, era a defesa da Fundação Estatal de Direito Privado. Apesar disso, conseguiram ganhar em apenas 1 grupo, de um total de 17, de modo que a resolução contra as FEDP foi também direto pro Relatório Final.

No intervalo do almoço já era possível notar o quanto os boatos haviam aumentado, na proporção em que agregávamos mais e mais delegados sob nossas bandeiras. Algumas pessoas ligadas a governos do PT abordaram militantes da Frente falando sobre como estávamos implodindo a Conferência, sobre como estávamos criando um clima agressivo usando adesivos e palavras de ordem, sobre como estávamos aparelhando a 14ª CNS, etc. Fica até constrangedor ter que explicar que, se hoje eles não usam adesivos, não puxam palavras de ordem, mas principalmente, não fazem o debate político e abandonaram as bandeiras em defesa de um SUS 100% público, foi porque eles mudaram de lado.

É importante fazer a ressalva de que tiveram também pessoas da comissão organizadora da CNS e pessoas ligadas a governos petistas que nos abordaram respeitosamente, reconhecendo o trabalho que estávamos fazendo de viabilizar a Conferência e reconhecendo como legítima a disputa que estávamos travando.

Por fim, no terceiro dia à tarde, conseguimos finalizar os trabalhos em mais da metade dos grupos, o que supostamente já garantiria um Relatório Final. Até a noite, todos os grupos finalizaram os trabalhos, o que consideramos uma vitória. Nossa avaliação era de que, se fosse depender da coordenação dos 17 GTs, que a Comissão Organizadora não preparou para coordenar os grupos (gerando muita heterogeneidade na sua condução e grande atrito entre os delegados em diversos grupos), a conferência não terminaria.

Ao final do dia, com os grupos todos concluídos, com o Relatório Final da Conferência garantido, nos perguntávamos se ainda assim haveria carta. Confesso que pensei que o Governo não correria o risco desse desgaste. Num cenário onde os GTs não terminassem, não houvesse relatório final, a proposta da Carta seria, provavelmente, mais bem aceita pelos delegados. Mas com o relatório final garantido, imaginei que, como o governo anterior, que também perdeu na 13ª Conferência Nacional de Saúde em relação às FEDPs, esse governo iria simplesmente ignorar o que foi aprovado, e seguir a vida. Mas não. Insistiram na construção da “Carta de Brasília”. Com um conteúdo “abrangente”, negociaram trechos com líderes de algumas entidades mais próximas do governo (ainda assim, algumas bastante fiéis da base governista não assinaram a carta), estabeleceram diálogo com alguns líderes de delegações estaduais (que apesar do diálogo não tiveram acesso ao conteúdo do texto). Isso tudo aos 45 minutos do segundo tempo.

A Carta em si, somente foi apresentada ao público da Conferência na hora da leitura em plenária, não sendo apresentada em nenhum espaço oficial da Conferência antes disso, e sem estar também na pauta da plenária final.

Ignorando pedidos de questão de ordem, sob manifestações contrárias dos delegados, a mesa encaminhou uma votação confusa, que incluía a leitura e aprovação da carta. Nessa votação, a proposta da mesa perdeu com contraste, mas a mesa acatou como aprovação da carta, incendiando o plenário. [Esses trechos da plenária podem ser vistos no vídeo a partir dos 90 minutos] Nesse momento o Ministro assume a condução da mesa dizendo que ninguém ganhará nada no grito, que ali ganha a democracia do crachá, e encaminhou novamente a votação, agora declarando que o que estava em votação era ter ou não uma carta, que seu conteúdo seria debatido em seguida. Na votação não foi possível diferenciar quem havia ganhado por contraste, mas a mesa entende como vencedora a proposta de existir uma carta e inicia sua leitura. Sem abrir para o debate, a carta é colocada em votação na íntegra e, novamente, sem que haja de fato contraste na votação, a mesa considera que seu conteúdo foi aprovado. Por fim, quem precisou ganhar no grito, porque obteve uma derrota política dentro da Conferência, foi o governo. A carta foi esse grito. E democracia do crachá, sem conhecer as propostas, sem fazer debate, fazendo uma carta com migalhas para cada um dos grupos que compuseram a Conferência, usando a autoridade do Ministro para manobrar a plenária é qualquer coisa, menos democracia. Concordo com o professor Paulo Capel Narvai quando diz que essa “vitória” do governo provavelmente foi como a de Pirro.

A Conferência acabou, e, apesar da manobra na plenária final, que deve ser denunciada, a análise é de que foi uma 14ª CNS vitoriosa! A luta contra a privatização do SUS e por um SUS 100% público e estatal vieram das bases. Chegamos relativamente poucos, enquanto Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, e a cada dia o movimento crescia. A cada dia conhecíamos lutadores e lutadoras de diversos rincões do país que estão tocando a luta à duras penas, resistindo. Não tenho dúvida que o Governo ignorará o que saiu da 14ª CNS (como já aconteceu com a votação da Emenda Constitucional 29 essa semana) e que nossas lutas se dão principalmente fora do espaço institucionalizado do Controle Social. Nosso grande saldo político não foi ganhar as deliberações da 14ª CNS, mas o que isso significa. A resistência por um SUS 100% público e estatal para que se faça garantir seus preciosos princípios de universalidade, integralidade e equidade, é uma histórica luta do povo brasileiro e que foi reafirmada nessa 14ª CNS. 

O SUS É NOSSO, NINGUÉM TIRA DA GENTE
DIREITO GARANTIDO NÃO SE COMPRA E NÃO SE VENDE



*Por Bruna Ballarotti, delegada da 14ª Conferência Nacional de Saúde, militante do Fórum Popular de Saúde de São Paulo, que compõe a Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde. É médica na Estratégia de Saúde da Família de Diadema-SP, filiada ao PSOL. Militou no movimento estudantil na Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), pela qual ocupou a vaga da UNE no Conselho Nacional de Saúde no ano de 2008.

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