quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Desejamos Saúde a você e todo mundo!


No espírito de Ano Novo, lembre aos outros: Se vai me desejar "Saúde!"...Que seja pública, universal e gratuita!"

Frase e arte do cartunista e escritor argentino Emilio Ferrero. 


Regras de Emilio Ferrero:

1) Pode compartilhar a imagem por WhatsApp, Twitter, etc.;

2) Não pode comercializar;
3) Pode fazer estampa de camiseta... Mas, não pode comercializar a camiseta;
4) Se quiser usar para outra coisa, pergunte-me antes;
5) Não pode apagar a assinatura da imagem.

Fanpage no Facebook: https://www.facebook.com/emilio.ferrero.5


Twitter: https://twitter.com/emilioferrero


Clique em cima da imagem para ampliar e ficar mais bonito!



terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O padrão EBSERH de ilegalidades

07/12/2017


Por Wladimir Tadeu Baptista Soares 

A EBSERH - Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, criada em 2011 por iniciativa do Poder Executivo Federal, é uma empresa estatal com personalidade jurídica de direito privado, considerada "empresa dependente", em razão de todo o capital social dela ser integralizado pela União - ou seja, uma empresa que subordina-se ao orçamento público da União. Tem, por mandamento constitucional, que respeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal no que se refere, dentre outras coisas, na observação do teto de gastos públicos com pessoal.

Entretanto, o seu gasto com pessoal (salários, adicionais, diárias de viagens, passagens aéreas, hotéis, cargos comissionados, etc.) representa, hoje, mais de 78% de todo o seu custo, revelando, assim, um grande aparelhamento político da empresa, que atua em um cenário de patrimonialismo, onde o interesse público primário é substituído pelo interesse privado de alguns.

Uma empresa criada sem  sede própria, que vem realizando contratos milionários com um hospital privado de São Paulo, configurando uma transferência milionária de dinheiro público para essa entidade hospitalar, cuja finalidade alegada não se justifica do ponto de vista da racionalidade, da economicidade e da moralidade pública.

Uma empresa que tomou para si todos os nossos Hospitais Públicos Federais Universitários, quebrando a Autonomia Universitária, de modo que, hoje, os Reitores das nossas Universidades Públicas Federais não têm mais nenhuma ingerência sobre esses hospitais-escola, hoje transformados em filiais da EBSERH.

Uma empresa com governança empresarial, sem nenhum compromisso verdadeiro com a educação médica - e nem com qualquer outra profissão da área da Saúde - e com a população, visto que é do modo de agir dela negar a assistência em saúde àqueles que precisam, criando regras e normas restritivas do Direito à Saúde, sem qualquer responsabilidade social com o ser humano em si mesmo.

E faz isso sem o menor constrangimento. Faz e pronto!

Uma empresa com 6 (seis)  anos de existência e já com um passivo bilionário que ultrapassa os 70 bilhões de reais.

Uma empresa reprovada pelo Ministério do Planejamento, que avaliou a sua gestão, conferindo-lhe a nota de 1,94 em uma variação de 0 a 10, sendo essa empresa criada com a justificativa de fazer uma gestão de qualidade dos nossos Hospitais-Escola: qualidade essa com nota no vermelho, sem direito à recuperação.

Ou seja, uma aberração administrativa, que só gera prejuízo econômico e social para os cofres públicos e para toda a nossa gente, razão pela qual jamais deveria ter nascido, e, por isso mesmo, deverá ser extinta para o bem de todos e segurança social da Nação.

EBSERH: um padrão imoral de qualidade!

Wladimir Tadeu Baptista Soares 
Advogado / Médico do SUS
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense - UFF
Niterói - RJ - wladuff.huap@gmail.com
Autorizo divulgação e publicação

Ebserh era pra ser a solução, mas atendimento no HU-UFSC piorou nos últimos dois anos

18/12/2017

Hospital Universitário de Florianópolis tem menos leitos para a comunidade e sofre com superlotações constantes, falta de funcionários e até goteiras em sala de cirurgia

Por Rafael Thomé, 
rafael.thome@somosnsc.com.br

Foto: Betina Humeres / Diário Catarinense

Em dezembro de 2015, o Conselho da Universidade Federal de Santa Catarina (CUN-UFSC) aprovou a adesão do Hospital Universitário (HU) à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), com a promessa de contratar profissionais, reabrir leitos fechados e ampliar o número de consultas médicas, apesar de 70,59% da comunidade acadêmica ter votado contra a decisão. Dois anos depois, a Ebserh está longe de cumprir a promessa.

Em fevereiro de 2016, a gestora do HU publicou o documento "Dimensionamento de Serviços Assistenciais", onde apontava a necessidade de contratação de 770 profissionais, previa a reabertura de 65 leitos e a implantação de 28 novos. Porém, de lá para cá, o HU teve mais 29 leitos fechados e nenhum aberto. Se até o final de 2015 eram 209 leitos ativos e 65 desativados, hoje são 180 leitos abertos e 94 desativados.

A Ebserh afirma que a reabertura de leitos está ligada à contratação de pessoal. Em 2017 a empresa realizou um concurso para a contratação de 489 profissionais, mas apenas 25 foram efetivados - a maioria na área administrativa. As convocações têm prazo de validade até agosto de 2018, com a possibilidade de prorrogação por mais 12 meses, e deverão respeitar o cronograma de convocação para toda a rede de hospitais geridos pela Ebserh.

Dos 39 hospitais que aderiram (à Ebserh), nós fomos o 38º. Então, muitos hospitais já realizaram concurso e estavam com prazo vencendo esse ano, por isso a Ebserh priorizou a contratação daqueles concursos. A partir do ano que vem entramos no cronograma de fato — justifica a superintendente do HU, Prof. Maria de Lourdes Rovaris.

Segundo a direção do HU, o ideal seriam 2.065 profissionais, sendo que a Ebserh aprovou o total de 1.720. Atualmente, o HU conta com 1.256 funcionários, e a falta de profissionais também ocasionou uma leve queda na média de consultas realizadas por mês. Ainda que esteja acima da meta de 9.863 consultas estipulada no "Dimensionamento de Serviços Assistenciais", o HU realizou entre maio de 2016 e novembro de 2017, em média, 10.435 consultas por mês. Até dezembro de 2015, a média mensal, de acordo com o sistema do HU, era de 10.816.

Não é só a questão da reabertura dos leitos. O trabalhador do hospital está com sobrecarga de trabalho, o que causa um absenteísmo (faltas) significativo. Começamos fortalecendo a divisão de gestão de pessoas para poder receber os novos trabalhadores. Temos uma exigência muito grande por ser um hospital geral, mas a perspectiva é que possamos recuperar isso — diz Maria de Lourdes.

Quanto ao número de cirurgias realizadas, a Ebserh afirma que o HU tem superado o que foi acordado com a Secretaria de Estado da Saúde para 2017. Este ano, a unidade teve uma média de 268 cirurgias mensais, 18 a mais do que foi pactuado em contrato. Entretanto, de acordo com o "Dimensionamento de Serviços Assistenciais", em 2015 foram realizadas, em média, 523 procedimentos cirúrgicos por mês.

Hoje, às 11h00, no auditório do HU, será apresentado o primeiro relatório após a adesão à Ebserh.

Constantes fechamentos das emergências

Ao longo destes dois anos, a suspensão dos atendimentos nas emergências adulta e pediátrica foram rotina por conta da superlotação das alas. De acordo com a direção do HU, atualmente a emergência adulta, por exemplo, está com 90% dos leitos ocupados.

Temos observado o aumento da demanda e, por isso, vivenciado períodos de superlotação. Elaboramos um procedimento operacional padrão, e quando atingimos os critérios que colocam em risco a segurança dos pacientes já internados, fazemos a suspensão temporária do atendimento de porta aberta. O atendimento referenciado, que é aquele encaminhado pelo Samu, bombeiros e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), continua sendo feito.

Para a superintendente Prof. Maria de Lourdes Rovaris, o fechamento da clínica médica em 2013 impactou a emergência, porque não há a possibilidade de transferir os pacientes para os leitos do hospital. Além disso, há o fato de o HU e o Hospital Celso Ramos serem os únicos de porta aberta na região central de Florianópolis.

A gente não pode falar do HU como um ente isolado do sistema. A população precisa ser acolhida melhor nas UBS e UPAs, e deixar os hospitais para os encaminhamentos referenciados. É claro que o ideal é ficar (com a emergência) sempre aberta, mas temos que garantir a segurança daqueles que estão em atendimento.

Na emergência pediátrica, também houve suspensão temporária dos atendimentos não referenciados. De acordo com a direção do HU, isso aconteceu porque, com o número reduzido de profissionais, a equipe médica priorizou os atendimentos aos casos mais graves.

Como não temos UTI pediátrica, precisamos estabilizar e transferir o paciente para o (Hospital Infantil) Joana de Gusmão. Quando fazemos a suspensão de uma ou duas horas é porque estamos concentrando toda a equipe no atendimento de um paciente grave.

Goteiras em sala de cirurgia

Um vídeo que circulou no Whatsapp (clique aqui para ver) na semana passada mostrou uma goteira em plena sala de cirurgia, durante um procedimento médico. O HU confirmou o fato e, em nota, disse que "o vazamento ocorreu no foco cirúrgico em função de ocorrência da quebra de um dos suportes da bandeja do equipamento de climatização do Centro de Material e Esterilização, que fica na mesma laje de cobertura do Centro Cirúrgico, porém distante aproximadamente quatro metros da sala cirúrgica".

De acordo com a direção do HU, "entre o suporte e o equipamento climatizador há uma bandeja com dreno, para possíveis condensações. Contudo, com a quebra do suporte, a bandeja virou, derramando água sobre a laje. Percebido isto, os técnicos secaram a laje de cobertura imediatamente. Mesmo com esta secagem, provavelmente a água infiltrou na laje e percorreu caminho através do eletroduto em seu interior, gerando a goteira no foco cirúrgico". Ainda segundo o HU, o problema já foi resolvido.

Reforma no telhado e aquisição de equipamentos

Entre os avanços do HU neste dois anos, a Ebserh destaca a habilitação em novos serviços na área de Atenção Hospitalar de Referência de Gestação de Alto Risco e Atenção Especializada às Pessoas com Deficiência, além da implantação da Gerência de Ensino e Pesquisa. 

A implantação do Aplicativo de Gestão dos Hospitais Universitários, sistema de informatização dos atendimentos, e a elaboração do Plano Diretor Estratégico com a definição de desafios e respectivas ações devem contribuir para o fortalecimento da instituição.

Neste período, também foram adquiridos mobiliário completo para um alojamento conjunto e duas unidades de clínica médica; aquisição de equipamentos como aparelho de Raios X portátil, aparelho de ultrassom, máquina de hemodiálise, ambulância, videocolonoscópio (para realização de colonoscopia), videogastroscópio (para realização de endoscopia), ventilador BIPAP (respirador mecânico), entre outros, no valor total de R$ 1,9 milhão.

Porém, o feito mais comemorado foi a reforma do telhado. Segundo a superintendente, o HU sofria com constantes infiltrações e goteiras, fato que está resolvido após a obra, que durou quase um ano. 

_ A gente vivia com baldes em todos os lugares, inclusive no centro cirúrgico. Em 2015, por exemplo, tivemos uma inundação em uma ala que tinha acabado de ser reformada e foi um recurso que tivemos que gastar duas vezes. A recuperação do telhado foi extremamente importante e bem marcante para a instituição.

Entrevista com a superintendente Maria de Lourdes Rovaris

- Que avaliação a senhora faz desses dois anos de Ebserh à frente do HU?

A avaliação é positiva, ainda que a adesão tardia tenha sido um fator que dificultou bastante. A gente já sabia disso em 2015, mas agora é trabalhar junto à Ebserh para que a gente possa ter o mais rápido possível um cronograma que nos dê a possibilidade de contratação ainda no primeiro semestre de 2018.

- Qual a projeção para os próximos oito anos?

O contrato é válido por 10 anos (já foram dois). O que a gente percebe é um fortalecimento da rede, porque antes estávamos sozinhos pleiteando alguma coisa e hoje estamos em um grupo de 39 hospitais. Temos compartilhado boas práticas. Acredito no fortalecimento da rede e que o HU consiga recuperar sua plena capacidade, crescer como instituição de ensino, pesquisa e extensão, além do desenvolvimento tecnológico.

- Qual o maior déficit de profissionais do HU?

Hoje, nosso maior problema é a falta de médico anestesista. Por isso, essa será a prioridade nas contratações. Já estamos socilitando cinco anestesistas para contratação imediata, porque não é só no centro cirúrgico. Temos uma exigência muito grande, por conta de ser um hospital geral. Também temos problemas com pessoal de enfermagem, mas hoje o que está travando são os anestesistas. Assim que a Eserh liberar, vamos contratar.

- Quais as dificuldades na gestão do HU?

Não é fácil. Às vezes as pessoas esquecem que o HU é uma instituição que funciona 24 horas por dia. Não tem Natal, Ano Novo, madrugada. Precisamos estar o tempo todo em pleno funcionamento.


sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Interesses privados na Saúde Mental

As contradições que perseguem a efetividade da Política de Saúde Mental no Brasil

Por Ana Paula Evangelista - EPSJV/Fiocruz 


A Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) está consolidada, porém estagnada: este diagnóstico é feito por militantes da Reforma Psiquiátrica no Brasil que identificam investimento insuficiente em serviços de atenção psicossocial, motor da luta antimanicomial, e o recrudescimento trazido por iniciativas como as Comunidades Terapêuticas e os leitos em hospitais psiquiátricos. “Não houve investimento efetivo do Estado na construção de uma rede substitutiva, nem na parte específica de serviços. Contraditoriamente, duas áreas fundamentais de mudança do modelo assistencial no Brasil, que são a Atenção Psicossocial e a Saúde da Família, estão precarizadas em vários aspectos”, descreve Paulo Amarante, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membro do Grupo de Trabalho da Saúde Mental da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). 

Já para Leonardo Vidal Mattos, coordenador do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento na Saúde da UFRJ, mais do que uma estagnação, o que está acontecendo é uma mudança no caminho do dinheiro público nessa área. Isso porque, segundo ele, com foco no tratamento de usuários de álcool e outras drogas, a Saúde Mental tornou-se um negócio lucrativo. “Eu acho que está mais para retrocesso do que estagnação. Se analisarmos a política pública que defendemos, da Reforma Psiquiátrica, de fato, há uma estagnação, mas se olharmos para um panorama mais amplo, considerando o avanço das Comunidades Terapêuticas, eu acho que pode se dizer que é um retrocesso”, explica Mattos.

Das origens aos dias atuais

Amarante explica que a proposta da Reforma Psiquiátrica era substituir o modelo asilar, de internação e exclusão social, e criar uma rede de serviços territoriais de atenção psicossocial, visando a integração da pessoa que sofre de transtornos mentais à comunidade, garantindo a cidadania e o respeito aos seus direitos e individualidade. “Não era apenas uma questão de humanizar o modelo ou de mudá-lo. A Reforma Psiquiátrica buscou refletir sobre o sujeito com transtorno mental e criar outras estratégias, que o incluísse na sociedade”, explica Amarante, fazendo uma analogia com o tema da escravidão: “Não bastou somente abolir a escravatura. Tirar os negros da senzala significaria criar alternativas para que, ao saírem de uma posição de desvantagem social, tivessem efetivamente possibilidades de inserção na sociedade”.

Fruto de um processo histórico de formulação crítica e prática, que questionou o modelo clássico e o paradigma da psiquiatria no fim da década de 1970, no contexto político de luta pela democratização, a reforma psiquiátrica hoje enfrenta algumas dificuldades, segundo Amarante. Uma delas é a carência de centros de Atenção Psicossocial (CAPS), especialmente do tipo 3 (CAPS III), dedicado a pessoas em intenso sofrimento psíquico, decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida, em municípios ou regiões de Saúde com população acima de 150 mil habitantes. “Com o processo de fechamento gradativo dos manicômios que se iniciou com a Reforma Psiquiátrica, a lógica seria investir primeiramente no CAPS III, porém foi priorizada a criação de CAPS I”, informa, referindo-se ao dispositivo que integra a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), mas que, diferente do CAPS III, não prevê internação temporária.

Para o Ministério da Saúde, ao contrário, o cenário é de investimento na área. Segundo a pasta, no Brasil existem atualmente 2.466 CAPS, o que representa um crescimento de 836% em relação a 2001, quando havia apenas 295 unidades. Além dos CAPS, a Rede de Atenção Psicossocial conta com 35 unidades de acolhimento de adultos no país, 22 infantis e 495 Residências Terapêuticas em espaços urbanos, criadas para responder às necessidades de moradia. “Esses números são muitos tímidos”, contrapõe Roberto Tykanori, psiquiatra e ex-coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da pasta em gestões do Partido dos Trabalhadores. A exemplo de Amarante, Tykanori reconhece um avanço da RAPS desde 2002, seguido por uma estagnação abrupta a partir de 2016. “Isso se deve a um desmonte, literalmente, da máquina pública”, resume.

Investimentos congelados

Em 2015, ainda no governo Dilma Rousseff, começaram a aparecer os primeiros indícios de que a PNSM estava sob ameaça. Tykanori, reconhecido pela sua militância na Reforma Psiquiátrica desde os anos 1980, foi substituído por Valencius Wurch. Entre os anos de 1993 e 1998, ele foi diretor da Casa de Saúde Doutor Eiras, em Paracambi (RJ), maior manicômio da América Latina, denunciado por violações dos direitos humanos, como o uso de eletrochoques, alimentação escassa e água não potável, fatos que provocavam óbitos com frequência. A indicação ao cargo provocou uma grande reação dos militantes da luta antimanicomial, culminando no Movimento Fora Valencius do Distrito Federal (DF) – o então coordenador só foi exonerado em maio de 2016, pelo ministro da Saúde substituto à época, José Agenor Álvares. “Eu não tinha ideia do quanto a substituição na Coordenação de Saúde Mental já indicava o desmonte da política pública. Na época, ainda pensava que era só um problema de acomodação política”, observa Tykanori.

Rosana Onocko Campos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Grupo Temático de Saúde Mental da Abrasco, confirma o congelamento dos investimentos na Saúde Mental, com base no primeiro Boletim Epidemiológico de Tentativas e Óbitos por Suicídio no Brasil, apresentado pelo Ministério da Saúde em setembro deste ano. O relatório aponta as altas taxas de suicídio entre idosos com mais de 70 anos e chama atenção ainda para o alto índice entre jovens, principalmente homens e indígenas. O mesmo relatório mostra que os serviços de assistência psicossocial têm papel fundamental na prevenção do suicídio, visto que nos locais onde existem os CAPS o risco de suicídio é 14% menor. Ela observa apenas um tímido crescimento dos CAPS-AD, destinado a pessoas que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas.  “Apesar da comprovação da importância desses centros, sabemos que há milhares de cidades no Brasil que não têm cobertura. Isso se deve ao fato de os recursos estarem sendo transferidos para as Comunidades Terapêuticas”, denuncia. E é aqui que estagnação e retrocesso se encontram.

Nada é por acaso

Foi como parte da política de combate às drogas que as Comunidades Terapêuticas passaram a receber recursos da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), subordinada ao Ministério da Justiça, especialmente a partir de 2015. Além disso, a Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde editou em outubro de 2016 a Portaria 1.482, que determina a inclusão dessas entidades no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). A portaria surgiu dois meses após a Justiça acatar pedido do Ministério Público Federal e suspender os efeitos de uma resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) que regulamentava o funcionamento das Comunidades Terapêuticas.

Pelo CNES, as comunidades devem ser definidas como “equipamentos de saúde” e atender a normas específicas, entre elas a Lei da Reforma Psiquiátrica de 2001, que regula as internações psiquiátricas e promove mudanças no modelo assistencial aos pacientes portadores de sofrimento mental, destacando-se o processo de desospitalização implementado através da RAPS. Essas entidades surgem na década de 1960, sob o propósito de oferecer tratamento a usuários de drogas. Como fiscalização insuficiente, tornaram-se uma “versão moderna dos manicômios”, como define a vice-presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e presidente da Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ana Sandra Fernandes Nóbrega. Uma inspeção nacional deflagrada sob sigilo pelo Ministério Público Federal (MPF), pelo Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura (MNPCT) e pelo CFP em 31 Comunidades Terapêuticas, nos dia 16 e 17 de outubro de 2017, atestou problemas como internações forçadas e não documentadas, instalações precárias e péssimas condições de higiene, suspeita de trabalhos forçados e até mesmo indícios de sequestro e cárcere privado com ausência da família – a relação com os nomes das intuições será divulgada em um relatório nos próximos meses. “Além da privação de liberdade, porque muitas pessoas não têm a escolha de saírem dali na hora que quiserem, foram identificadas várias situações de violação de direitos humanos”, antecipa Ana Sandra. 

Mas se não se enquadram como serviços de saúde, indo na contramão da Política Nacional de Saúde Mental, como essas entidades conseguem recursos públicos e crescem em número a cada ano? Para Paulo Amarante, a resposta pode ser encontrada no lobby feito pelas bancadas religiosas no Congresso Nacional. “As igrejas com seus poderes financeiro, econômico e ideológico incidem diretamente sobre o poder político que as representam. As Comunidades Terapêuticas são parte de um processo que se dá por meio de liberação de emendas parlamentares”, afirma Amarante.

Esse processo, segundo o pesquisador Leonardo Mattos, foi iniciado em 2009 com a criação da Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas) - desde então, a obtenção do certificado de filantropia virou pauta das Comunidades Terapêuticas - seguida em 2011, da mudança na Resolução da Anvisa (RDC 29/201), que dispõe sobre os requisitos de segurança sanitária para o funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativa, permitindo a participação das entidades ativamente. Na sequência, em 2013, o Planalto passou a pressionar a Senad para liberar recursos para as Comunidades Terapêuticas na esteira do plano ‘Crack, é possível vencer’. A iniciativa, lançada em 2011, envolveu os ministérios da Saúde, Justiça, Educação, Desenvolvimento Social e Combate à Fome e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. A medida recebeu apoio do então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, sob alegação de que as entidades eram responsáveis por 80% do atendimento a dependentes e não poderiam ser ignoradas na rede de atendimento.

Ainda em 2013, Vitore André Zílio Maximiano, ex-2º subdefensor público-geral do Estado de São Paulo, assume a Senad. “Desde que assumiu a função, Maximiano demonstrou ser possível convencer as Comunidades Terapêuticas e sua bancada parlamentar de que a parceria proposta pela então ministra da Casa Civil Gleisi Hoffman era real. Ele disse claramente o que iria fazer e fez: por meio de contratos e convênios, destinou uma expressiva verba para estas entidades”, revela Mattos. O lobby pela regulamentação da atividade resultou no lançamento da Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Terapêuticas, em 2015, e na aprovação do marco regulatório pelo Conad. “Em 2016, Ricardo Barros entra como ministro da Saúde e autoriza depois de outubro a concessão da nova regulamentação para obtenção e renovação dos certificados, o Cebas, para as Comunidades Terapêuticas”, acrescenta Mattos. 

O ano de 2016 se destaca também para as Comunidades Terapêuticas pelo lançamento do Plano Progredir, da gestão Michel Temer, que prevê ações do governo federal para gerar emprego e renda e promover a autonomia das pessoas inscritas no Cadastro Único e dos beneficiários do Programa Bolsa Família. “Parece ter alguma relação, não está muito claro ainda. Mas representantes das Comunidades Terapêuticas estiverem presentes e em defesa do plano”, reflete Mattos. 

O poder da organização

Em 2012, a criação da Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (Confecnat) – liderada pela Federação Norte e Nordeste de Comunidades Terapêuticas (Fennoct), Cruz Azul no Brasil, Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract), Federação das Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil (Feteb) e Obra Social Nossa Senhora Da Gloria Fazenda Esperança (Fazendas Esperança) – marca o recrudescimento trazido pelas Comunidades Terapêuticas sobre o setor público. Na lista de conquistas da Confecnat estão: audiências com os ministros da Saúde, Justiça e Casa Civil para reconhecimento e financiamento das Comunidade Terapêuticas; audiência com a ex-presidente Dilma Rousseff, que se comprometeu em apoiar o trabalho das Comunidades Terapêuticas; a revisão e a alteração da legislação que regulamenta as instituições, com a promulgação da Resolução da Diretora Colegiada (RDC 029 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA); o lançamento do Edital de Financiamento de Projetos de Reinserção Social para as Comunidades Terapêuticas pelo Ministério da Saúde; o Censo (mapeamento) das Comunidades Terapêuticas do Brasil; o lançamento do Edital de Financiamento de Vagas em Comunidades Terapêuticas pela Senad; e a inserção da modalidade de atendimento de Comunidade Terapêutica no Projeto de Lei 7.663/2010, aprovado na Câmara dos Deputados, que altera a Lei Sobre Drogas (11.343/2006). “Isso comprovaria um avanço das propostas conservadores sobre o setor público, e não uma estagnação da Política de Saúde Mental”, observa Leonardo Mattos.

Egon Schlüter, presidente da Confenact e secretário-geral da Cruz Azul no Brasil – entidade filantrópica católica que oferece serviço de atendimento à dependentes de drogas e presta assessoria e apoio às Comunidades Terapêuticas, explica que o objetivo de criar a Confederação foi ter uma representação única nos espaços de discussão e que a agenda principal do grupo é retomar debates sobre a regulamentação. “O marco regulatório foi suspenso sem uma análise do mérito, mas tendo como pano de fundo segmentos que, historicamente, são contra o trabalho das entidades do terceiro setor. Foram motivados por conselhos profissionais, Conselho Federal de Psicologia e Conselho Federal de Serviço Social, o pessoal da antropologia, que durante a construção do marco regulatório sempre se manifestaram contra”, argumenta. Segundo ele, esses segmentos não entendem o trabalho das Comunidades Terapêuticas como serviço de tratamento e acolhimento. “Estamos articulando junto ao Congresso Nacional uma lei federal que regulamente o serviço de Comunidade Terapêutica, para que tenhamos uma legislação específica para o nosso modelo e assim não nos confundam com as clínicas que fazem tratamento involuntário”, anuncia.

Para Schlüter, as Comunidades Terapêuticas implicam serviços de atendimentos residencial e psicossocial. “Não somos a volta dos manicômios. Nós somos, justamente, uma modalidade que vem como alternativa aos manicômios”, defende. Se por um lado ele admite existir entidades que se denominam ‘comunidades terapêuticas’, mas que praticam agressão física, psicológica, maus tratos e cárcere privado, por outro defende a importância de uma rede de comunidades terapêuticas com mais de 20 anos de atuação e que é referência internacional nessa modalidade. “Uma legislação federal é justamente para nos dar ferramentas enquanto federações e confederações de monitorar e fiscalizar o atendimento. Além disso, um serviço para ser financiado com recursos públicos precisa de regulamentação”, reforça. Ele sugere ainda a aprovação do Projeto de Lei da Câmara 037/2013 do deputado Osmar Terra (PMDB), que traz um capítulo sobre a atuação das Comunidades Terapêuticas.  “Apesar de curto, é um texto bastante consistente e objetivo. Se aprovado, já teríamos uma lei federal que daria uma regulamentação mínima”, enseja.

Em relação ao Cebas e à inclusão no CNES, Egon Schlüter considera que as proposições foram precipitadas. “Não somos um serviço de natureza clínica médico-hospitalar, e nunca seremos”, sentencia. Ele avalia que a decisão de associar a obtenção do Certificado de Entidade Beneficente e Assistente Social ao cadastramento no CNES foi unilateral. “Nós sempre pleiteávamos um registro junto à Saúde, ou seja, um CNES específico para a nossa modalidade, sem uma natureza clínica-médica”, explica, acrescentando que o estatuto da Confenact está sofrendo alterações para ampliar as filiações das federações e associações estaduais de Comunidades Terapêuticas.

O financiamento por recursos públicos também está na pauta da Confederação. Somente a Senad financia quatro mil vagas em Comunidades Terapêuticas. “Mas, ainda é pouco ao compararmos com as 80 mil vagas que são oferecidas pelas mais de duas mil comunidades terapêuticas que hoje existem no Brasil”, argumenta Egon Schlüter. Segundo o presidente da Confenact, o trabalho de mobilização realizado pela regulamentação das Comunidades Terapêuticas tem como foco a busca de um financiamento público continuado e a inserção das instituições de atendimento na política pública. “Não se trata, neste caso, de explorar o mercado, já que a Confenact é composta por federações sem fins lucrativos. Somos uma modalidade voluntária, um movimento político apartidário, tanto que as pessoas que integram a diretoria da Confederação não podem ocupar um cargo público nem estar concorrendo ou ocupando um cargo eletivo”, avalia ele.

Para Leonardo Mattos, esses objetivos e metas da Cofenact comprovam o retrocesso na PNSM, uma vez que introduzem oficialmente as entidades religiosas na política de Saúde. Essa influência da religião sobre as decisões políticas pode ser confirmada por um estudo promovido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que revela que das 2 mil comunidades terapêuticas do país, 82,2% são ligadas a alguma religião. A espiritualidade é a principal prática terapêutica (95,6%), mas 55% aplicam remédios nos internos. “Os interesses conservadores estão associados ao interesse mercadológico. Não se trata de algo meramente empresarial ou meramente religioso, mas sim de uma associação perigosa entre religião e ação mercantil”, define.

Disputa de leitos

Além de interesses econômicos e religiosos, os princípios da Reforma Psiquiátrica também são fragilizados por pautas corporativas. Um dos exemplos é a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que defende uma reforma dos hospitais psiquiátricos e ampliação dos leitos. “Existe a defesa de que esses hospitais sejam renovados e que garantam a soberania do ato médico, o que não ocorre dentro dos hospitais gerais e CAPS”, explica Pilar Belmonte, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Porém, isso vai de encontro aos princípios da Reforma Psiquiátrica, que prevê a internação apenas em casos que o paciente esteja em crise.

A discussão em torno da necessidade de expansão de leitos de saúde mental ganhou destaque depois que um levantamento feito pelo Ministério da Saúde (MS), apresentado pela Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas à Comissão Intergestores Tripartite (CIT) em 31 de agosto e ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) em 14 de setembro, evidenciando problemas como subnotificação, má gestão de recursos destinados a obras e baixa ocupação de leitos. De acordo com os dados divulgados, que teriam sido gerados por um novo sistema de monitoramento, a taxa de ocupação dos leitos de saúde mental nos hospitais gerais é inferior a 15%, quando na avaliação do MS deveria ser de 80%.

O panorama implicou a criação de um Grupo de Trabalho para aprimorar o controle e o modelo de financiamento da política de Saúde Mental em todo o país e orientação do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) para retomar o debate sobre a ampliação dos leitos em hospitais psiquiátricos. Para o Conselho Federal de Psicologia (CFP), no entanto, trata-se de mais uma tentativa de apresentar como solução para os problemas do SUS o incentivo aos leitos nos hospitais psiquiátricos da rede privada de Saúde. “Tem acontecido um movimento que é bem peculiar de desqualificação total da Rede de Atenção Psicossocial. Dizem que não funciona, sem apresentar uma proposta substitutiva”, avalia Ana Sandra, questionando se não seria de interesse exclusivamente mercadológico. “Isso não seria de se estranhar em face do avanço do neoliberalismo em nossa sociedade capitalista”, observa. Em nota pela defesa dos hospitais psiquiátricos, a ABP e o Conselho Federal de Medicina (CFM) elencam 12 problemas da assistência psiquiátrica no Brasil. “Uma taxa de ocupação tão baixa indica que estes leitos não existem, são fictícios. Em nenhum país do mundo, leitos psiquiátricos em hospitais gerais foram ou são úteis. O hospital especializado em psiquiatria e o hospital geral são diferentes até na arquitetura”, argumenta o psiquiatra Salomão Rodrigues Filho, associado à ABP. Segundo ele, o leito psiquiátrico tem mais espaço físico para os pacientes fora dos quartos e isso é importante para o paciente de saúde mental. Já os hospitais gerais valorizariam mais o espaço do quarto, adequado para pacientes acometidos por doença física. “Como o doente mental permanece muito pouco no leito, quando internado em hospital geral ele incomoda os demais pacientes e, por isso, esses leitos são utilizados por pacientes psiquiátricos passíveis de tratamento ambulatorial ou não são utilizados”, justifica.

Segundo a ABP, a existência de leitos psiquiátricos de boa qualidade é bem-vinda em qualquer país do mundo. E lista: “Na Inglaterra, são 0,58 leitos psiquiátricos; nos Estados Unidos, 0,95 leitos psiquiátricos; no Canadá, 1,90 leitos psiquiátricos; e no Brasil, apenas 0,18 leitos psiquiátricos por mil habitantes”. Ele considera que a proposta de reduzir leitos psiquiátricos e excluir o médico psiquiatra da assistência ao doente mental somente é defendida por “militantes ideológicos da desassistência ao doente mental”. “Esses militantes partem de uma falsa premissa ‘nicaraguense’ de que os pacientes psiquiátricos não são doentes e sim diferentes, por isso não precisam de tratamento e sim de cuidados. Desta forma, negam o extraordinário avanço do conhecimento científico na área e o formidável benefício que os fármacos propiciam aos doentes mentais”, diz.

A ABP argumenta ainda que Comunidades Terapêuticas só foram incluídas pelo governo no Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD 2009-2011) porque não há leitos psiquiátricos disponíveis. “As Comunidades Terapêuticas não são médicas. Isso significa retrocesso, uma vez que elas retornam à época da psiquiatria religiosa e policial, abandonando a psiquiatria científica, excluindo o médico psiquiatra do sistema assistencial. Elas se proliferam e ocupam um espaço que o governo brasileiro negligenciou”, reprova Salomão, alegando que a internação hospitalar de doentes mentais não fere a Lei 10.216/2001. “Pelo contrário, o artigo 6º da lei já diz que a internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos, normatiza de forma correta a internação hospitalar psiquiátrica. O termo manicômio etimologicamente é correto, mas no Brasil foi obstaculizado”, orienta.

Em resposta à ABP e ao CFM, o Ministério Público Federal (MPF) divulgou uma nota que rebate cada ponto exposto pelas entidades. “A divulgação da taxa de ocupação de leitos de saúde mental em hospitais gerais, por si só, sem investigação de sua causa, não traz o caminho da solução”, escreve. Para o MPF, uma das possíveis causas desse cenário é a falha no encaminhamento ao serviço, diante da ausência de centrais de regulação do acesso em todas as regiões de Saúde. “De mais a mais, a diminuição das internações em leitos de saúde mental [em hospitais gerais] é desejável, pois é dado indicativo do respeito ao direito do paciente de manter sua vida livre e autônoma, pela oferta suficiente e atenção adequada na rede extra-hospitalar. Nenhuma política em saúde mental pode se centrar no aumento do acesso a internações, em hospitais psiquiátricos ou Comunidades Terapêuticas, por evidente descumprimento das leis que protegem as pessoas com transtorno mental”, analisa o Ministério.

Há, porém, uma contradição: “Se no hospital geral, que prevê também leitos para a psiquiatria, não há uma superlotação, por que nos hospitais privados faltam vagas? Será que eles ficam mantendo essas pessoas internadas para poder garantir o pagamento do uso do leito?”, questiona Ana Sandra. Uma das respostas para a pergunta pode residir no fato de que, apesar de ter fechado mais de 60 mil leitos com a Reforma Psiquiátrica, o Brasil não conseguiu abrir um campo substitutivo com outras possibilidades de cuidado. “A rede privada pega essa ausência do Estado. Os donos de hospitais desejam a volta do parque manicomial, que aumente o número de leitos, só que custeado pelo SUS. Ou seja, o que se quer é uma rede grande de hospitais conveniados pagos pelo SUS, com o mínimo possível de regulação”, conclui Paulo Amarante.

Para Pilar Belmonte, os dados mostram que, de fato, é preciso uma mudança na forma de pagamento dos leitos. Hoje, segundo ela, o Ministério paga um valor fixo para os hospitais gerais, independentemente de os leitos estarem ou não ocupados, o que acaba desincentivando que eles sejam destinados para pacientes de saúde mental. Já sobre os hospitais psiquiátricos, ela é categórica: “O que temos que fazer é reduzir esses leitos até que eles sejam extintos o quanto antes”, defende. Ela explica que um leito em hospital geral e, mais ainda, nos Centros de Atenção Psicossocial que preveem internação (CAPS III) é muito mais eficaz. “Essas instituições não trabalham sob a lógica do encarceramento. O princípio delas é atender o paciente em sua integralidade, diferentemente do velho modelo do hospital psiquiátrico”.

O reforço da dose para "cura gay"

O tema gerou grande polêmica em todo país e fora dele também. Em 15 de setembro, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do Distrito Federal, acatou parcialmente uma liminar que, na prática, torna legalmente possível que psicólogos ofereçam terapias de reversão sexual, popularmente chamadas de ‘cura gay’. Trata-se, neste caso, do resultado de uma ação popular movida contra o Conselho Federal de Psicologia (CFP) por Rozangela Alves Justino, que pedia a suspensão da Resolução 01/99 do CFP, que proíbe a oferta desse tipo de tratamento. Psicóloga de formação e missionária, como define em seu blog, seu registro profissional foi cassado em 2009 porque ela oferecia pseudoterapias para curar a homossexualidade masculina e feminina. A isso se soma o fato de que, desde junho de 2016, Rozangela tem um cargo no gabinete do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) na Câmara – que é ligado ao pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.

Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), a psicóloga Pilar Belmonte critica a tentativa de resgate da patologização da homossexualidade, um conceito excluído pela Organização Mundial da Saúde em 1990. Ela ainda lembra que pelo caminho surgiram outras tentativas nesse sentido, como foi o caso do projeto de lei (PL) 717/2003, do deputado João Campos (GO), na época no PSDB, que previa a criação pelo governo estadual – ou seja, com financiamento público – de um programa de auxílio às pessoas que, voluntariamente, optassem por tentar deixar de serem homossexuais. O PL não foi a frente graças à mobilização de profissionais da Saúde, das Ciências Sociais e do Direito, que enviaram na ocasião à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) um abaixo-assinado de repúdio. O arquivamento foi pedido pelo próprio João Campos, que, na época, foi pressionado pelo PSDB. Atualmente, João Campos, da Igreja Assembleia de Deus, está no PRB.

Tramita ainda na Câmara um projeto de lei que busca permitir esse tipo de “tratamento” por parte de psicólogos sem que esses sejam punidos. A proposta em discussão é o PL 4.931 de 2016, apresentado por Ezequiel Teixeira (PTN-RJ). O texto propõe a autorização da aplicação de uma série de terapias com o objetivo de “auxiliar a mudança da orientação sexual, deixando o paciente de ser homossexual para ser heterossexual, desde que corresponda ao seu desejo”. “Esse deputado é o mesmo que, quando secretário de Assistência Social e Direitos Humanos no governo do Rio de Janeiro de [Luiz Fernando] Pezão, foi demitido após comparar a homossexualidade à AIDS e ao câncer, em uma entrevista na qual defendeu a cura gay”, conta Pilar . Para a pesquisadora, esses projetos têm algo em comum: “Os deputados que os apresentaram são pastores, de diferentes cultos, e tentam vincular suas propostas a algum grau de cientificidade”. E acrescenta, com ironia: “O que não é verdade e possível de ser observada na primeira leitura superficial, pois se fosse possível a ‘conversão’ deveriam oferecer o tratamento não somente para quem quer deixar de ser gay para voltar a ser hetero, mas também para quem apesar de ‘ainda hetero’, tem desejos homoeróticos e precisa de apoio para mudar sua orientação sexual, de hetero para homo, o que não é o caso”.

Coincidentemente ou não, o atual projeto da ‘cura gay’ está na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aguardando o parecer do relator deputado Diego Garcia (PHS-PR), o mesmo que, em 2015, relatou o Estatuto da Família, no qual definiu a família como a união entre homem e mulher por meio de casamento ou união estável, desconsiderando todos os outros arranjos já existentes em nossa sociedade. “O conservadorismo revela-se como terreno fértil para que essas propostas ressurjam. Isso faz com que os religiosos se sintam ainda mais à vontade para misturar política e religião e defender seus valores individuais em propostas que afetam todo um coletivo”, observa Pilar.

Diferente do que vimos ao longo desta reportagem, Pilar não acredita que essas iniciativas específicas sejam motivadas por interesses empresariais. “Prefiro achar que não é disso que se trata quando se apresenta uma proposta de ‘cura gay’, mas sim que há um embate entre a dimensão da escolha, incluindo neste caso a orientação sexual, e o caráter patológico da homossexualidade, enviesado pelas questões morais e religiosas, por vezes travestidas de científicas”.

Segundo ela, como consequências imediatas estão o maior preconceito social e a produção individual do sofrimento, visto que o que entra em jogo é o embate entre a busca pelo sujeito de seu desejo e os constrangimentos de ordem sociocultural. “Qualquer proposta, projeto, decreto sobre cura gay é uma violação dos direitos humanos sem qualquer fundamento científico”, sentencia.

*Retirado do EPSJV