segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Em Belo Horizonte, ocupação Dandara desafia especulação imobiliária há três anos


Reconhecida internacionalmente por denunciar a especulação imobiliária na capital mineira, comunidade tem como uma de suas principais estratégias de resistência a busca constante por uma rede de apoiadores externos. Em 2009, a construtora Modelo, proprietária do terreno, acumulava uma dívida de mais de R$ 2 milhões em IPTU não recolhidos.

Por Lívia Bacelete

Belo Horizonte - “A Dandara não joga para perder. Vamos conquistando as coisas, que para muita gente é dificuldade, mas para nós é um jeito de lutar, conquistar e nunca desistir”. O depoimento de Geílsa Rocha Lima revela o espírito do povo dandarense, forma como se autodenominam os moradores da ocupação Dandara. Geílsa vive na área desde o início da ocupação, em 2009, e garante que sem dificuldade não há luta.

Localizada entre os bairros Céu Azul e Nova Pampulha, em Belo Horizonte (MG), a Dandara está situada em uma área de 40 hectares, onde vivem cerca de mil famílias. Inspirado na companheira de Zumbi dos Palmares, o nome não foi por acaso. No início, 70% das pessoas que faziam parte da ocupação eram mulheres que empreendiam uma luta contra a escravidão do aluguel e buscavam um futuro digno para seus filhos.

Propriedade da construtora Modelo, o terreno estava ocioso desde a década de 1970 e acumulava uma dívida de mais de R$ 2 milhões em IPTU não recolhidos. “A sociedade pode falar que somos invasores, mas a gente só ocupou um lugar que estava há 40 anos vazio”, explica Geílsa, que antes de ir para a Dandara era uma pequena empresária do setor de calçados. Ela e o marido entraram em falência e viram na ocupação uma oportunidade de recomeçar a vida da família.


Uma das maiores ocupações do Brasil, a Dandara surgiu em 9 de abril de 2009, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pelas Brigadas Populares, movimento social voltado ao trabalho nas comunidades periféricas de Belo Horizonte. Joviano Mayer, advogado popular da ocupação e militante das Brigadas Populares, lembra que a proposta inicial da ocupação era experimentar em Minas Gerais aquilo que em São Paulo foram as Comunas da Terra.

Muita casa sem gente e muita gente sem casa

Originalmente, eram cerca de 100 famílias. No entanto, em seguida ocorreu uma forte massificação com a chegada de diversas pessoas vindas das periferias da própria região e até de fora de Belo Horizonte. Isso comprometeu o projeto inicial de uma área rurbana, algo viável com um número reduzido de famílias.
“A mídia criou condições para que a ocupação tivesse repercussão, mas o que levou esse número de famílias a ir para comunidade foi a crise habitacional que vivemos nas grandes cidades hoje, e Belo Horizonte não foge a essa regra”, analisa Mayer. Um estudo realizado pela Fundação João Pinheiro, em 2008, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad-IBGE), de 2007, revela que o déficit habitacional em Minas Gerais é de 474 mil moradias, das quais 115 mil são na Região Metropolitana de Belo Horizonte –no país, o déficit é de 6 milhões e 273 mil domicílios. 

Na primeira semana, cerca de 1.080 famílias chegaram a se cadastrar na ocupação. A maioria vivia em situação de insegurança de posse, área de risco, morava de favor e, principalmente, pagava aluguel. Segundo a Fundação João Pinheiro, as famílias urbanas com renda familiar de até três salários mínimos que moram em casa ou apartamentos e comprometem mais de 30% de sua renda com alugue,l sofrem um “ônus excessivo com aluguel”, caracterizando-se como famílias sem-teto.

Geílsa e sua família ficaram sabendo da Dandara através da televisão. “No dia em que eu e meu esposo chegamos, a ocupação já estava começando, mas não havia mais vagas”. Eles voltaram para casa e algum tempo depois um amigo, que já estava na área, avisou que havia mais espaço. Joviano Mayer explica que a decisão de permitir a entrada de um número maior de famílias foi uma opção política para aumentar a capacidade de resistência, visto que, logo no primeiro dia da ocupação, a polícia tentou executar uma ordem de despejo. Através de um recurso no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, encaminhado pelos advogados populares, a ordem de despejo foi suspensa pela primeira vez.

Apoio externo

A busca constante por uma rede de apoiadores tem sido mais uma das estratégias de resistência das famílias. Foram realizadas campanhas nacionais e internacionais em solidariedade à Dandara, que chegou a receber o apoio de mais de 20 países. Também foi feita uma campanha de ãmbito local, por meio da distribuição de cartas e jornais na redondeza, para dialogar com a população do entorno da ocupação.

Joviano Mayer destaca que a comunidade ampliou o arco de apoiadores, aliados e o campo de influência, conseguindo chamar a atenção da sociedade para um outro projeto de cidade e criando um contexto em que um despejo representaria grande ônus político para as autoridades. Ele avalia que se a ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), fosse conhecida como a Dandara, talvez não teria sofrido uma consequência tão desastrosa como seu desalojamento, em janeiro de 2012. 

“Tentamos fazer tudo que é possível do ponto de vista da luta direta, da organização popular e da busca de apoios para não ter uma situação de limite, na qual a gente tenha que pensar outras formas de resistência, que implique confrontação com as forças repressivas do Estado”,explica.

Compõem a rede de apoio da ocupação Dandara grupos e congregações religiosas, organizações e ONGs internacionais, movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, coletivos e grupos culturais, vereadores, deputados estaduais e federais, professores e estudantes secundaristas e universitários.

Outra importante estratégia de resistência das famílias tem sido a organização popular. “A Dandara já construiu várias lideranças. O povo se autoconstrói enquanto constrói a comunidade”, explica Frei Gilvander. Atualmente, inúmeros moradores assumiram a militância social e atuam em outros territórios, seja em ocupações ou periferias.

Plano alternativo

No fim de 2009 e início de 2010, uma assessoria técnica composta de arquitetos, geógrafos e estudantes da Pontifícia Universidade Católica-Minas e Universidade Federal de Minas Gerias elaborou, com o apoio dos moradores, um plano urbanístico para a ocupação. Entre as propostas estão a criação de lotes com 128m² para todas as famílias; praças e áreas de lazer; uma área de proteção ambiental, pois no terreno existe uma nascente; a implementação de equipamentos coletivos, como centro e horta comunitários, igreja ecumênica e outros. Os moradores já construíram, por iniciativa própria, 900 casas de alvenaria na área.

Felter Rodrigues dos Santos mora há dois anos e meio na ocupação e avalia que uma grande conquista das famílias foi aprender a viver em comunidade e dividir as coisas. “Viver agrupando pessoas foi uma conquista maior, porque são pessoas com ideias diferentes, mas que lutam pelo mesmo objetivo”. Ele dá o exemplo da igreja ecumênica. “Ela foi construída através de várias mãos, através de lutas. Conquistamos esse tipo de ideal, que é uma igreja onde todos possam frequentar, com denominações religiosas diferentes, mas ocupando o mesmo espaço na comunidade.”

Apesar de inúmeras reivindicações, serviços públicos como água, iluminação, saneamento básico e limpeza urbana ainda não atendem os moradores da ocupação, que atualmente fazem ligações clandestinas para ter acesso a eles. Para o advogado Joviano Mayer, a postura do poder público municipal é de dificultar e negar os direitos das famílias. “Ter acesso aos serviços públicos é direito, e a natureza da posse, a forma como se vive no território, não pode implicar em vedações a esse direito”, afirma.

Geílsa e Felter garantem que a ausência desses serviços está entre as principais dificuldades enfrentadas pelos moradores hoje. “Queremos ter dignidade de pagar nossa conta de água e luz. Isso seria o básico agora. A gente quer ter uma referência, um comprovante de residência, porque algumas pessoas ainda têm aquele preconceito quando você fala que mora na comunidade Dandara”, desabafa Geílsa. Ela acredita que o preconceito ainda existe, apesar de diminuir a cada dia. “O maior preconceito era no posto de saúde, mas hoje já somos atendidos nos bairros Céu Azul e Itamaraty”, afirma.

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*Retirado da Carta Maior
**Republicado aqui com pequenas alterações de texto, que em nada modificam o teor original
***Conheça o blog da Ocupação Dandara: http://ocupacaodandara.blogspot.com.br/


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