quarta-feira, 2 de outubro de 2013

"A dívida é basicamente um mecanismo financeiro que se autorreproduz e se auto-alimenta", afirma Maria Lucia Fatorelli à Revista Poli

Entrevista realizada por Viviane Tavares


Maria Lucia Fatorelli foi nomeada pelo presidente Rafael Correa para integrar a Comissão de Auditoria Fiscal da Dívida Pública do Equador, que atuou entre 2007 e 2008. Como resultado do trabalho que ela ajudou a construir, o país diminuiu em 70% uma dívida sobre a qual não havia comprovação. Tudo indica que a situação do Brasil seria semelhante, mas, nesta entrevista, ela conta que aqui têm sido fracassadas as tentativas de se realizar uma simples conferência dessa conta que a sociedade brasileira paga sem saber exatamente por quê. E que, hoje, somando as dívidas interna e externa, já ultrapassa US$ 3 trilhões. 

Esta demanda também esteve presente nas ruas durante as manifestações do mês de junho de 2013, mas, assim como foi feito com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que tratou da dívida brasileira em que Fatorelli também contribui com trabalhos, os parlamentares e a imprensa fizeram questão de "esquecer". 

Auditora fiscal e coordenadora do Movimento Auditoria Cidadã da Dívida Pública, Fatorelli fala à Poli sobre o caminho árduo que o movimento tem seguido no Brasil, relembra as origens da dívida, aponta os principais credores e explica ainda as razões (ou a falta delas) para que continuemos a pagar juros tão altos.

O que é a dívida?

Em âmbito federal, a dívida se divide em externa, que atualmente é de US$ 450 bilhões, e interna, que é de US$ 2,8 trilhões. A diferença entre uma e outra é que a externa é contraída no exterior, com credores estrangeiros, e a interna teoricamente seria contraída com credores internos, ou seja, nacionais. A questão é que, considerando a ausência de controle de capitais e o ingresso de grande número de bancos no país e com poder, hoje quem tem direito de comprar os títulos da dívida interna são em grande parte bancos internacionais. Portanto, essa teoria de dívida interna e externa deveria ser revista. 

Atualmente, as duas dívidas estão sob a forma de títulos. Não existe mais aquele antigo contrato que você contrai com determinado credor. Desde a década de 1990, o endividamento passou a ser por emissão de títulos. Se ele emite internamente, a dívida é interna, se emite no exterior, a dívida é externa. Então, os que compram essas dívidas são os credores da nossa dívida. Nós já pedimos informações sobre quem são eles, mas o Tesouro diz que é informação sigilosa e libera essas informações somente em bloco. A última informação que tivemos, durante a CPI da dívida externa, é que são bancos, bancos de investimento, fundos de pensão nacionais e estrangeiros. Enfim, mais de 95% dos títulos está em mãos do setor financeiro. 


Como contraímos essa dívida?

Ao falarmos da dívida, podemos chegar até ao descobrimento do Brasil. Para garantir nossa independência, nós assumimos uma dívida que Portugal contraiu com a Inglaterra para justamente lutar contra nossa independência. Já que não conseguiram o que pretendiam, empurraram a dívida para nós. A nossa história com a dívida começa com uma característica marcante até hoje: falta de contrapartida. 

Na década de 1930, quando Getúlio Vargas era presidente, ele questionou a que se referiam os pagamentos. Ele determinou que o Ministro da Fazenda da época levantasse esses contratos e iniciou uma auditoria. E qual foi a surpresa depois desse levantamento? Apenas 40% da dívida na época se comprovava por contrato. Além disso, foram encontradas deficiências. O ciclo desta dívida atual começou na década de 1970. No início desta década, nossa dívida externa era de U$ 5 milhões e a interna era desprezível. Para a importância do país, essa dívida era considerada pequena. É preciso lembrar que estávamos em uma ditadura, no período em que se aprofundou o regime ditatorial. 

Exatamente em 1971 os EUA aboliram a paridade do dólar com o ouro. E isso possibilitou a emissão indiscriminada de dólares, a mera impressão de qualquer quantidade de dólares. Isso gerou um excesso de liquidez, excesso de moeda que foi canalizado por meio do sistema bancário, que passou a oferecer este excesso de moedas a países, principalmente a países com ditadura civil-militar. Na nossa avaliação, essas ditaduras entraram para possibilitar o domínio econômico e o instrumento para sacramentar esse domínio econômico foi o endividamento. Tem até um livro interessante que se chama "Confissões de um assassino econômico", de John Perkins, que era um agente do sistema financeiro americano. Ele era uma das pessoas que vinham oferecer esses empréstimos para estimular grandes obras, como construção de viadutos, hidrelétricas, pontes, que foram muito marcantes na ditadura, como uma espécie de compensação, para criar um clima de progresso, tudo isso que simbolizou a ditadura civil-militar. O que eles ofereciam, além das taxas baixas, era o tempo de carência, em geral de cinco anos. Então, você pegava um empréstimo e depois empurrava para o próximo que assumisse o mandato. Neste período, de 1970 a 1980, a nossa dívida cresceu 1000%, pulou de US$ 5 milhões para US$ 50 milhões em âmbito federal. E neste contexto, os estados e municípios entraram no esquema. 

Não existe literatura sobre essa dívida dos estados, o trabalho da nossa auditoria é inédito. Fomos pesquisar as resoluções do Senado, porque todas as dívidas destes dois entes têm de ser aprovada pelo Senado Federal. E descobrimos que a maioria das resoluções da década de 1970 e 1980 sequer informa quem foi o agente que ofereceu o empréstimo e a destinação dele. Existe uma suspeita, portanto, de que os estados ajudaram a financiar a ditadura. Mas ainda não conseguimos concluir este estudo.

No governo do Lula dizia-se que tínhamos pagado a dívida. O que liquidamos naquele momento?

Isso foi muito grave. O que o presidente Lula em 2005 pagou foi apenas a dívida externa com o FMI [Fundo Monetário Internacional]. Na época, existiam US$ 300 milhões de dívida externa e foram pagos US$ 15 milhões. Esse pagamento representou 2% da dívida, se somarmos a interna e a externa. Para pagar isso, o Brasil fez emissão de títulos da dívida interna em reais para pagar em dólar. O que houve não foi pagamento, foi troca. Deixamos de dever ao FMI para passar a dever a bancos que compraram os títulos. Na dívida com o FMI, eram cobrados juros de 4% ao ano e estamos emitindo títulos na base de 19% ao ano. Trocamos uma dívida de 4% por 19%. Mas alguém pode argumentar que não devemos ao FMI, e isso é um ponto positivo. Mas, no dia desse pagamento, o [Antonio] Palocci publicou uma carta na página do Ministério da Fazenda argumentando que o pagamento ao FMI não significaria o rompimento dos compromissos do estatuto do Fundo, que vincula as políticas ao Fundo, dá a ele o direito a todas as informações do país, inclusive aquelas a que não temos acesso – o FMI tem porque fica dentro do Ministério da Fazenda. 

Fazendo uma comparação simplista: se chega à minha casa uma conta cujos gastos eu não reconheço, procuro entender e, se não achar justo, não pago. Quais as razões das resistências à auditoria da dívida se não se sabe a origem de tudo que o Brasil paga? 

Esta é uma questão fundamental. Agora, só faz essa pergunta quem tem consciência do peso da dívida e de que quem paga a dívida somos nós. A maioria das pessoas não tem consciência porque acha que o [ex-presidente] Lula pagou e outra grande parte não tem noção do quanto isso faz falta para [a garantia dos] outros direitos como Saúde, Educação... E esse é o papel do movimento da Dívida Cidadã: mostrar o peso desta dívida e que somos nós que devemos determinar os investimentos da União. Isso é o resultado da desinformação da nossa sociedade. A mídia comercial é financiada pelos grandes beneficiários desse sistema, portanto, a ela não interessa divulgar o que nós produzimos. Por isso é tão importante todo o trabalho da mídia alternativa que dá espaço a este tema. 

Quem são esses grandes grupos?

O Citigroup, por exemplo, está aqui desde a década de 1970 e hoje é um dos chamados dealer, que têm o poder de comprar títulos direto do Tesouro. Se você ou eu quisermos comprar diretamente, não podemos, temos que ter um intermediário. Mas um grupo de doze bancos tem, e a cada seis meses há uma pequena mudança, mas o Citigroup está sempre presente. E se esses dealers não concordarem com alguma coisa, se o juros não estiverem do jeito que eles querem, ficam de braço cruzado até chegar aonde querem. Por isso se chamam dealer: assim como no jogo de poker, quem dá as cartas é quem manda no jogo. É muito sugestivo eles se chamarem assim, não é?

Como foi a sua experiência na auditoria da dívida do Equador e o que podemos trazer de aprendizado para o Brasil?

Eu fui nomeada por decreto do presidente Rafael Correa, quando ele criou uma comissão para fazer a auditoria. Ele nomeou vários equatorianos e seis estrangeiros ligados a movimentos sociais dedicados a questões da auditoria pública. No dia da inauguração da comissão, o ministro da fazenda do Equador estava com uma cartilha da Auditoria Cidadã que lançamos no Fórum Social Mundial em 2006 e sinalizou que ela tinha sido uma das inspirações da criação da comissão. 

Nós tivemos acesso aos arquivos, tínhamos o poder de pedir informações a qualquer órgão, que tinha o dever de nos fornecer essas informações. Foram contratadas cinquenta pessoas para a comissão, algumas de nível técnico, para trabalhar. Mas, ainda assim, sofremos boicotes de funcionários ligados aos esquemas fraudulentos, porque a dívida é ligada a fraudes em todos os países. Tivemos dificuldades, dados distorcidos... Foi analisada a dívida externa contratada com bancos privados internacionais, e lá também o Citigroup era o campeão. O processo era idêntico ao do Brasil, até em dados, só o valor, que aqui é multiplicado em muitas vezes. Era a típica dívida com juros mais altos e mais fraudulenta, e isso torna o estudo mais difícil porque você tem que ter prova, documento, fundamento jurídico. O resultado foi um relatório de mais de mil páginas, todo comprovado com documentos. Quando entregamos o relatório, o [presidente] Correa já suspendeu o pagamento dos juros que venceriam nos próximos dois meses. E naquele mesmo ano, o valor que ele pagaria de juros foi aplicado em Saúde e Educação.

A revista inglesa The Economist publicou o aumento dos gastos nestas duas áreas em 70%. Além disso, o Correa submeteu nosso relatório ao crivo jurídico de profissionais internacionais e de instâncias nacionais equivalentes ao nosso Ministério Público (MP) e Advocacia Geral da União (AGU) e, após o retorno desses pareceres, ele fez um ato soberano: uma oferta para resgatar os próprios títulos por 30% do valor com um certo prazo. Assim, 95% dos títulos foram comprados, anulando 70% da dívida. Isso significou uma economia de US$ 7,7 bilhões. O Equador criou uma outra comissão agora para os tratados bilaterais de investimento e me convidou novamente, mas não tenho condições dessa vez. Nós aqui no Brasil não temos esse tipo de tratado.

Existem outros países que já fizeram auditorias como essas?

Tivemos relatos de países da América Latina e da África e houve uma proposta de formarmos o Clube de Quito, em contraponto ao Clube de Paris e de Londres, onde os credores se reúnem. Sabemos também de várias auditorias cidadãs: houve um trabalho muito importante na Argentina, no Paraguai antes do Golpe a partir da Controladoria do Governo, uma iniciativa no Peru por um processo judicial, e na Grécia, Espanha, Bélgica, Portugal, etc.

Por que a CPI da dívida no Brasil não foi para frente?

A CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] possibilitou acesso a documentos que antes não conhecíamos, inclusive, alguns da época da ditadura. Vimos diversas dívidas do setor privado assumidas como dívidas públicas, alguns escândalos da década de 1990. 

Enquanto no Equador tínhamos uma equipe montada com cinquenta pessoas, aqui no Brasil éramos apenas dois – eu e um auditor da Caixa Econômica Federal. Só isso já foi um boicote para o rendimento do trabalho. Fizemos um relatório neste período de nove meses, por conta da experiência no Equador. Além disso, os partidos não indicavam os representantes para a CPI e, por sorte, localizamos um parecer feito pelo Michel Temer, quando ele era advogado de um partido, dizendo que se houvesse esse tipo de boicote deveria ser feita uma denúncia para o Supremo, para que este designasse os membros da CPI na marra. E colocamos [o parecer] na mão do Ivan Valente [deputado federal pelo Psol-SP] no dia em que o Michel Temer estava presidindo a Câmara. O Ivan Valente falou e indicou "essas palavras são suas, presidente". Foi um vexame para ele ser desmoralizado por suas próprias palavras. Só conseguimos tocar a auditoria porque achamos esse parecer. Este parto só para instalar! Eu fui requisitada para trabalhar na CPI e só depois de um mês fui liberada para isso, por conta dos trabalhos que tinha que concluir. Depois disso, na hora de montar a equipe, também não conseguimos. Mas, mesmo assim, montamos um relatório da dívida externa e interna, que está no Ministério Público.

Atualmente, o governo continua se endividando?

A dívida é basicamente um mecanismo financeiro que se autorreproduz e se auto-alimenta. Considerando que o Brasil paga os maiores juros do mundo, e é impossível ter recurso para pagar todos esses juros, o que fazemos? Emitimos dívidas para pagar juros. É como se estivéssemos no cheque especial. O país tem feito dívidas novas por conta desses megaeventos, por exemplo. O núcleo do Rio de Janeiro [da Auditoria Cidadã] teve acesso a documentos do estado do Rio de Janeiro com organismos internacionais, latino-americanos, inclusive, para obter recursos e financiar as obras da Copa do Mundo. Com os megaeventos, quem está se endividando mais são os estados e municípios. Após a Constituição, os estados passaram a poder emitir títulos para pagar precatório e dívidas por condenações judiciais, depois foram proibidos de emitir título para isso. A maior dívida dos Estados é com a União, que financiou as dívidas a partir de 1997, mas foi em condições tão onerosas que, quanto mais o estado paga, mais ele deve. É reproduzido o mesmo esquema dos bancos.

Entrevista realizada por Viviane Tavares em setembro de 2013 e publicada na Revista Poli N° 30

*Retirado do EPSJV

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