sábado, 30 de março de 2013

Manifesto em defesa do CAPS Itapeva e do SUS


março 29, 2013

Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 30/03/2013

MANIFESTO EM DEFESA DO CAPS ITAPEVA E DO SUS

Queremos noticiar, por meio deste brevíssimo texto escrito às pressas, a difícil jornada que nós, profissionais da Saúde Mental, temos enfrentado; em especial nestes últimos dias. O intuito aqui é de transmitir que, recentemente, e mesmo não estando numa ditadura, sofremos um golpe. Gostaríamos de compartilhar com outros profissionais, serviços de saúde, aos que se interessam pela Saúde Mental e pela defesa do SUS e movimentos sociais em defesa da vida, aos que militam ainda por uma “sociedade sem manicômios” e pela manutenção dos ideários da Reforma Psiquiátrica. E, ainda, aos psicanalistas interessados pela clínica da psicose, pelas questões da saúde pública. O evento de “caça às bruxas” que, infelizmente, estamos enfrentando neste momento no CAPS e que todos estamos cientes que faz parte de um contexto muito maior e bastante atual. Esperamos, assim, disparar uma discussão mais ampla.

Fonte: ponto.outraspalavras.net

O CAPS Professor Luís da Rocha Cerqueira – bastante conhecido como CAPS Itapeva - esteve nos seus últimos anos sob a gestão da Organização Social SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento para a Medicina). O nome desta organização, que também gerencia outros equipamentos de saúde espalhados pela cidade de São Paulo, já sugere que a sua preocupação é bem específica. A sua administração tem comprovado que o seu interesse é exclusivamente a medicina, interesse este que não se estende aos pacientes nem tampouco à Saúde Mental. Explicaremos…

No início desta semana, fomos surpreendidos com a notícia de que haveria uma demissão em massa – na qual cerca de 30 profissionais em regime de CLT foram desligados abruptamente do serviço. O motivo alegado pela direção era o corte de verba realizado pela Secretaria de Estado da Saúde. Anexado a este aviso, também nos foi informado que seríamos liberados do cumprimento do aviso prévio e, ainda, que seríamos indenizados de acordo com a lei e não precisaríamos voltar ao CAPS, ficando a direção com a incumbência de comunicar o nosso desligamento aos usuários. Obviamente, ignoramos esta última sugestão, para não dizer solicitação, recusando-nos a desaparecer do CAPS. Desse modo, temos – além de administrar o impacto desta notícia para cada um de nós e a forma violenta como tal manobra foi feita pela direção do serviço - nos dedicado a realizar a despedida com os nossos usuários, tentando explicar para cada um a situação, fazer o desligamento e, em alguns casos, planejar e realizar os encaminhamentos possíveis. Apesar de estar sendo um momento de expressivo sofrimento para usuários e funcionários, impossível de ser disfarçado, temos tentado suavizar, na medida do possível, o impacto desta situação, acolhendo os usuários que, por sua vez, têm se mostrado muito lúcidos e também acolhedores para com a equipe nesta circunstância tão devastadora.

Nesta reunião da direção com os funcionários, tudo se deu em caráter de informe (não deixando nenhuma brecha para qualquer debate e esclarecimentos); aliás um, senão o único, esclarecimento que nos foi dado foi assim explicitado: uma equipe mínima se responsabilizaria pelo cuidado de mais de 500 pacientes – garantindo, então, que o CAPS não fechasse as suas portas - e que não precisaríamos nos preocupar. Mas, isto é quase impossível para os que escolheram trabalhar num equipamento como o CAPS, cuja missão é acompanhar intensivamente os pacientes com quadros mentais graves e seus familiares.

A nossa hipótese é que este corte de vários profissionais alocados neste CAPS foi um pretexto para fazer a “faxina”, ou seja, retirar aqueles que incomodam, que, no entender da direção, “atrapalham” porque relembram incessantemente os princípios da Reforma Psiquiátrica, que entendem que o CAPS é um lugar de uma construção coletiva que leva em consideração seus usuários e profissionais para a efetivação de qualquer mudança, que enfrentam a loucura sem querer normatizá-la, que não evita os conflitos que existem em todo e qualquer ambiente institucional, que entende que os impasses na clínica podem ser promotores de avanços teóricos e, consequentemente, para a própria clínica.

Pela experiência que tivemos até então, a política da SPDM é manter a gestão separada da clinica. A sua perspectiva de trabalho é bastante médica, verificável nas mínimas condutas, Por exemplo, no início do convênio firmado com esta Organização Social, a direção insistia em que a triagem deveria ser uma atribuição dos médicos, desconsiderando que o acolhimento, num modelo CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), é uma prática de que todos os profissionais participam. Em outro momento, quiseram instituir um programa em parceria com a Unifesp que, no CAPS, denominaram de “Programa de Esquizofrenia Refratária”, que caracterizaria por um grupo que atuaria junto aos pacientes com diagnóstico de esquizofrenia em uso de clozapina. Sempre aprovamos que o serviço pudesse usufruir do que há de melhor em termos de medicamentos, mas não apoiamos sobremaneira as ações e programas cujo recorte é a doença, pois estas propostas correm na contramão de um CAPS. Foram vários os enfrentamentos da equipe com a direção que nos mostrava todos os dias um desconhecimento das balizas que norteiam o nosso trabalho. E mais grave: desconhecem a premissa fundamental do CAPS, a saber: a instituição é um recurso da clínica e não apenas um espaço físico para alojar loucos. Assim, a conseqüência é de que temos vivido, sobretudo, com esta experiência, que a direção não faz questão de que a instituição seja acolhedora, pois desconsidera os princípios mais básicos para uma relação de convivência com a diferença, que prima pelo respeito e pela reciprocidade.

A nossa hipótese é de que com essas mudanças todas, eles até poderão continuar a se nomear CAPS (e receberem muito por isso), mas será a realização de uma outra proposta: um ambulatório, um centro de referência, um centro de especialidades, um setor de hospital, um estacionamento (como ironizou uma ex-servidora) ou qualquer outra coisa, menos um CAPS.

Infelizmente, o que temos assistido é que o CAPS Itapeva – que carrega uma história tão longa no campo da Saúde Mental e também na formação de profissionais - tem sido desmontado por meio de muitas estratégias (que aqui não daria para esmiuçar), sendo a demissão em massa apenas uma delas. Ambicionando um ambiente asséptico em que não cabe nenhuma espécie de discordância e conflito, esta administração não coloca a clínica em primeiro lugar. Ademais, despreza as diretrizes e princípios estipulados pelas portarias ministeriais, o que enfraquece o SUS. Com a saída maciça de profissionais, muitos projetos, oficinas, grupos, atendimentos, equipes, parcerias institucionais e intervenções no território foram encerrados; destruindo, em nossa opinião, em um tempo tão curto, investimentos de tantos anos. A execução das demissões tem redundado numa série de desdobramentos e o que constatamos é que o maior ataque é dirigido ao próprio CAPS, visto que a instituição não é o espaço físico somente, mas são as pessoas, os profissionais e os pacientes que animam esta clínica, bem como as práticas e os acontecimentos construídos cotidianamente e compartilhados coletivamente.

Cabe ainda dizer, mais do que garantir os nossos empregos ou lutar por condições mais dignas e favoráveis de trabalho no campo da Saúde, a nossa intenção com este texto é manifestar publicamente a nossa insatisfação com esta situação e, sobretudo, defender o CAPS. Em se tratando do Itapeva, o CAPS mais antigo do Brasil, o primeiro a experimentar a clínica ampliada, que alojou àqueles que participaram da sua invenção (antes mesmo deste projeto se constituir como lei) e que estavam atravessados pelas experiências de Reforma no mundo, a saber: a psicoterapia institucional francesa, a desinstitucionalização italiana, dentre outras; e que fizeram valer, desde 1987, a proposição de Franco Basaglia de que é possível e desejável uma clínica que coloque a doença entre parênteses e cujo foco seja a existência/sofrimento e que, no dizer dos simpatizantes da psicanálise, uma clínica cujo foco é o sujeito.

Enfim, a nossa indignação pode ser ainda explicitada com estas perguntas: Como essas pessoas – impregnadas por um discurso médico e psiquiatrizante, que estiveram ao longo de seus itinerários formativos e de trabalho, tão alienadas destes movimentos históricos e sociais, especialmente, da Reforma Psiquiátrica, movimento este que dá norte a todos os CAPS - podem gerenciar este projeto? 

Como entregar nas mãos desses que se dizem especialistas em cuidar de pacientes com “transtornos mentais graves” (como eles gostam de dizer) e, que ao fazer o gerenciamento do serviço a seu bel prazer, desconsideram o vínculo? 

Como deixar que estes gestores administrem um equipamento deste porte como uma empresa e não como um serviço de saúde, viabilizando ações que banalizam os efeitos da ruptura para os pacientes psicóticos? 

Que tipo de lugar tem a clínica para eles? Qual o compromisso com os usuários? O que fazer para impedir esse desmantelamento de um trabalho coletivo construído há anos cuja aposta é fortalecer uma clínica artesanal, inevitavelmente implicada com as ações e com o desejo de cada um? 

Em suma, como aceitar tamanha contradição?

*Retirado do Saúde Brasil
**Republicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 30/03/2013


Um comentário:

  1. Vejam o que acontece quando se admitem políticas públicas que fragilizam o atendimento à saúde mediante espúrias terceirizações. Lamenta-se pelos profissionais competentes e responsáveis contratados por tais métodos. A pergunta que deve ser feita é por que os Conselhos Profissionais dos variados ramos da Saúde compactuam com esta modalidade de prestação de serviço e de gestão dos serviços públicos de saúde, em nome de uma pseudo complementariedade dos serviços franqueados à iniciativa privada. Estamos assistindo ao transgenerismo dos serviços públicos.

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