terça-feira, 23 de outubro de 2012

Participação da Comunidade no SUS e Conselho Nacional de Saúde: uma experiência que agoniza


Participação da Comunidade no Sistema Único de Saúde do Brasil

Por Francisco Batista Júnior 
Farmacêutico, representa a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade 
Social da CUT no CNS e é membro da Mesa Diretora do Conselho Nacional de Saúde.


O quadro atual do SUS e seus desafios

Dentre todos os elementos estruturantes que compõem o arcabouço jurídico e político do Sistema Único de Saúde – SUS no Brasil, sem dúvidas que a Participação da Comunidade constitui a mais relevante, desafiante e intrigante.

Concebido como um efetivo Sistema que promova e garanta a saúde em todos os seus aspectos e necessidades com promoção, prevenção e recuperação plenas, com uma força de trabalho marcada pela importância da atuação multiprofissional, e com um financiamento que deve ser adequado às suas necessidades, todos eixos estruturantes bastante ambiciosos, é sem dúvida a Participação da Comunidade que remete a proposta histórica do SUS ao seu ponto de interrogação definitivo.

Há hoje no Brasil o entendimento da necessidade premente de equacionar corretamente os desafios que estão colocados em todos os eixos estruturantes citados. É urgente o fortalecimento da atenção primária e da rede pública, há uma necessidade imediata de garantir um maior aporte de recursos financeiros bem como profissionalizar a gestão e estabelecer políticas que permitam a ampliação da sua força de trabalho, na perspectiva de superar os gargalos caracterizados pela dificuldade do acesso e da resolutividade.

A importância da Participação da Comunidade

Raciocinando em tese, podemos afirmar que as possibilidades dessas demandas estarem colocadas de forma tão aflitiva como estão, seriam bem menores caso a Participação da Comunidade, exercida particularmente através dos conselhos e das conferências de saúde, tivesse acontecido a contento durante esses anos em que o SUS vem sendo implantado no país.

Em sã consciência, ninguém que participou dos debates da Reforma Sanitária brasileira e da construção do Sistema Único de Saúde imaginou que seria uma tarefa fácil e tranquila colocar em prática a proposta aprovada na Constituição Federal de 1988. Afinal, estava em curso a implantação de algo jamais imaginado, pelo seu caráter includente e democrático, num país assolado pelo autoritarismo, pela concentração de renda e poder, pelo corporativismo, patrimonialismo, conservadorismo, preconceito e pela exclusão social.

Não é, portanto, sem explicação que, fazendo-se uma análise mais criteriosa, possamos perceber a enorme distância entre o que preconiza a legislação e a sua situação real e concreta.

Mesmo reconhecendo importantes e alvissareiras experiências localizadas e pontuais, a verdade é que o Sistema Único de Saúde que dispomos no Brasil, apesar do excepcional papel que tem desempenhado como indutor da melhoria da qualidade de vida do brasileiro, está anos-luz de distância daquilo que é apregoado pela legislação que lhe diz respeito.

Um SUS invertido e descaracterizado

Isso se dá exatamente em função da manutenção da hegemonia conservadora em todas as esferas de governo e em todos os espaços institucionais, que trabalham diuturnamente na perspectiva de implantar um SUS que atenda prioritariamente aos interesses do status quo. E é isso que tem acontecido. Ao invés de termos um Sistema eminentemente público com a participação privada complementar naquilo onde provisoriamente não houver condição de atender a população que dele necessita, o SUS hoje é um portentoso Sistema que está inteiramente ao dispor dos grandes grupos privados econômicos e corporativistas.

Sintonizado com essa linha mestra político-ideológica, a Atenção Primária e as ações de promoção e prevenção foram e são sempre negligenciadas, como forma de potencializar as necessidades dos demais níveis de atenção, implicando num crescente comprometimento do seu financiamento e uma supervalorização de profissionais especialistas.

O nível de atendimento dos interesses privados hoje atinge todo o Sistema, desde as ações e serviços que são contratados em substituição aos públicos, que são abandonados ou fechados, passando pela força de trabalho contratada por intermédio de processos de terceirização que envolve empresas privadas ou cooperativas e atingindo por fim a própria gerência dos serviços públicos, entregue também a empresas privadas juntamente com os recursos financeiros que são exigidos para o desenvolvimento do processo.

Estruturado dessa forma de acordo com a lógica de mercado, o SUS está praticamente inviabilizado, não apenas em função de um financiamento flagrantemente insuficient,e mas principalmente pela opção político-ideológica que hoje faz parte do ideário do governo brasileiro.

A Participação da Comunidade enquanto responsabilidade maior

Mas se as coisas têm acontecido dessa maneira, qual é exatamente o fator que tem sido determinante, além da correlação de forças e da manutenção do poder pelos grupos econômicos, políticos, patrimonialistas e corporativistas? Para nós não há dúvida de que o grande diferencial que poderia alterar essa correlação de forças e estabelecer novos paradigmas que permitiriam ao SUS uma implantação de acordo com os seus princípios, seria uma Participação da Comunidade qualificada, politizada e organizada.

Sem dúvida que a proposta do SUS instigante, transformadora e contra hegemônica, tem na participação da comunidade seu componente que mais intimida e desafia toda a cultura historicamente afirmada no Brasil. Afinal toda a trajetória do país tem sido marcada, desde o Império, por um poder fortemente concentrado e exercido à revelia da opinião e da participação das pessoas, cujo papel têm se limitado a disciplinada obediência as decisões dos grupos dirigentes.

A resistência à proposta de Participação da Comunidade no Sistema único de Saúde do Brasil já foi manifestada oficialmente a partir do veto, por parte do então Presidente da República, a todos os dispositivos que originalmente previstos na chamada Lei Orgânica do SUS diziam respeito a essa possibilidade. Surgiu daí a necessidade de uma ampla mobilização de setores sociais e políticos que tiveram como produto a elaboração de uma nova lei, essa sim aprovada e sancionada, elaborada então com a específica finalidade de garanti-la. Temos então duas leis que compõem a Lei Orgânica do SUS, a 8.080/90, que trata da organização, estruturação e funcionamento do Sistema e a 8.142/90, que se refere diretamente à participação da comunidade no SUS.

Esse foi sem dúvida o primeiro e forte sinal de que a sociedade brasileira não teria facilidades na busca da implantação e consolidação da sua participação nos destinos da saúde.

Distintos momentos históricos

Passado um primeiro momento de efusiva e importante mobilização das entidades civis e dos movimentos organizados diante da nova perspectiva histórica, pudemos então perceber o enorme desafio que era a constituição e funcionamento dos Conselhos de Saúde em todos os municípios e estados da federação, um desafio que hoje engloba mais de 5.500 municípios e 27 estados.

Como atender a necessidade de, em todos esses lugares, constituirmos conselhos paritários, representativos e legítimos, numa sociedade tão diversa, complexa e, principalmente, profundamente autoritária? Para dar conta dessa complexidade, o Conselho Nacional de Saúde liderou, nos idos de 1996, a criação da Plenária Nacional de Conselhos de Saúde, um espaço não institucionalizado e autônomo, que tinha a tarefa de periodicamente realizar eventos locais, regionais e nacionais, com a finalidade de trocar informações, conhecimentos e ideias e, a partir daí, definir táticas que apontassem para o fortalecimento coletivo dos conselhos, bem como definir objetivos a serem atingidos nos diversos espaços e planos de atuação política.

Esse foi sem dúvida o momento de maior efervescência do chamado “Controle Social” do SUS no Brasil. Grandes eventos em Brasília, com a participação de um número cada vez maior de militantes, passaram a discutir a conjuntura política, a realidade do sistema em todos os municípios, suas fragilidades, seus acertos e avanços. Foi a Plenária de Conselhos de Saúde que deflagrou, de forma irreversível, o movimento pela aprovação de uma Emenda Constitucional que desse conta das necessidades financeiras do SUS, surgindo daí a Proposta de Emenda Constitucional 169, transformada a seguir na Emenda Constitucional 29, finalmente aprovada no ano de 2000.

Mas a Plenária viveu também um momento de grande retrocesso na Participação da Comunidade, quando o Ministério da Saúde, por volta de 1999, percebendo o enorme poder de mobilização política que o coletivo encerrava, deflagrou um movimento deliberado de esvaziamento dos conselhos de saúde de todo o país, tendo o Conselho Nacional à frente. O então ministro da saúde passou a debater, deliberar e encaminhar todos os temas relevantes da saúde, e que naturalmente seriam pauta do Controle Social, na Comissão Intergestores Tripartite, um colegiado que tem a participação apenas de gestores das três esferas de governo, e que tem a tarefa de pactuar as políticas depois que elas são aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde.

O mesmo processo passou a se reproduzir nos estados através das Comissões Intergestores Bipartite, compostas por gestores estaduais e municipais, num movimento que promoveu um brutal esvaziamento dos conselhos de saúde que viveram até o ano de 2002; sem dúvida, o seu pior momento nessa ainda curta trajetória.

Mesmo assim, é digno de registro o movimento de resistência dos Conselhos de Saúde, com o Conselho Nacional à frente, que continuou realizando atividades, embora em menor número e infinitamente com menor impacto.

Por outro lado, além das dificuldades de organização e funcionamento decorrentes dos limites do movimento social, com baixo nível de formação e qualificação e insuficiente renovação de quadros, mesmo os Conselhos que conseguiam se destacar, passaram a se defrontar com inimigos mais poderosos ainda, o desrespeito às suas decisões e a impunidade.

Teve início um processo de profundo descrédito a respeito do papel que os Conselhos e as Conferências de saúde teriam no SUS. Afinal, a rotina passou a ser o sistemático desrespeito e desconsideração com aquilo que era produzido nesses espaços de participação. Louve-se a atuação, que então passou a acontecer em praticamente todo o país, do Ministério Público, que se revelou o principal aliado da comunidade na defesa dos interesses do SUS, numa luta profundamente desigual, na qual a resposta da parte do Executivo e do Judiciário sempre foi pífia e, na maioria das vezes, nula, nenhuma!

O avanço e um prenúncio de consolidação

Foi nesse contexto profundamente complexo e difícil que o movimento social fez uma definitiva aposta no governo Lula. E hoje podemos afirmar que o balanço é bastante significativo. O Conselho Nacional de Saúde foi totalmente reestruturado, ampliado e fundamentalmente democratizado, estabelecendo um processo eleitoral nacional que eliminou o “direito” cativo que muitas entidades tinham até então, e radicalizando na democracia, elegeu pela primeira vez o seu presidente oriundo do movimento social, interrompendo um processo que estabelecia compulsoriamente o gestor federal como presidente automático do colegiado. Praticamente todos os principais sonhos e anseios do movimento em relação ao maior e mais importante colegiado do Controle Social do SUS no país foram alcançados.

Entre novembro de 2006 a fevereiro de 2011, o Conselho Nacional de Saúde viveu sem dúvida sua mais rica experiência. Realizou em 2007 a maior e mais representativa Conferência Nacional de Saúde pós-Constituição Federal de 1988; liderou um enfrentamento nacional contra a proposta de criação das fundações de direito privado a serem implantadas na saúde; realizou grandes seminários nacionais para debater a gestão do SUS; protagonizou a Primeira Caravana Nacional em Defesa do SUS em quase todos os estados da federação, debatendo em cada local a realidade do Sistema; e a Primeira Conferência Mundial para o desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social, com a participação de mais de 90 países.

Pautou, debateu e deliberou sobre praticamente todas as políticas propostas pelo governo federal e iniciou um forte movimento de aproximação com os Conselhos de Saúde em todo o país, formalizando alianças políticas e realizando conjuntamente atividades que debatiam a intervenção dos conselhos, bem como ações para o seu fortalecimento e consolidação. O Conselho Nacional de Saúde viveu então seu apogeu enquanto colegiado de referência para os demais colegiados. Foram inúmeros os Conselhos que seguiram o exemplo do CNS, promovendo reestruturações que contribuíram decisivamente para um novo momento político.

Se de um lado todo esse virtuoso processo se desencadeava, na outra ponta permanecia o autoritarismo e a impunidade dando as cartas. Se é certo que houve um decréscimo na denúncia de conselhos que sofriam os revezes do autoritarismo, de outro é fato que, principalmente nos municípios menores, essa lógica continuou prevalecendo, desestimulando setores da sociedade e fortalecendo o viés da impunidade, sem dúvida uma das grandes marcas, senão a maior marca da nossa história.

As disputas políticas enquanto elementos desconstrutores

Todos esses avanços conseguidos coletivamente no Conselho Nacional de Saúde, colocaram num processo de hibernação as disputas internas que normal e naturalmente existem em qualquer espaço político. Dessa maneira, o presidente do CNS foi reeleito por aclamação e sem maiores traumas nos anos de 2007 e 2008. Isso não significa dizer que a disputa não existisse e que a contundente atuação do colegiado, com uma visibilidade bastante significativa principalmente quando se tratava de se contrapor a propostas do governo, não estivessem na pauta política.

Isso veio à tona na eleição de 2009, quando em uma disputa acirrada pela presidência, o então presidente foi mais uma vez reeleito, numa contenda com uma candidata que se apresentava como representante do segmento dos Usuários, e onde as grandes polêmicas com setores dos Gestores passaram a dominar a pauta política, particularmente nos debates que o Conselho Nacional de Saúde estava realizando sobre a privatização da gerência dos serviços da rede do SUS, colocada em prática em vários estados da federação.

O ano de 2010 foi marcado por esse enfrentamento com setores dos gestores, mas foi também o ano de realização de dois grandes seminários nacionais que discutiram a Atenção Primária e as relações entre o público e o privado no SUS.

O acirramento nas relações com os gestores e os desdobramentos políticos da disputa realizada em 2009, tornaram a sucessão, que deveria acontecer em 2010, o momento de maior tensão do CNS nesses últimos anos. Uma disputa interna radicalizada criou as condições para que o governo Dilma colocasse em prática o projeto de retomar para o governo a presidência e a condução política dos destinos do maior colegiado de Controle Social do SUS.

O brutal retrocesso

Numa articulação interna em que nós discordamos da forma, do método e do conteúdo, o governo conseguiu convencer a representante dos Usuários que estávamos publicamente apoiando, a abdicar da sua candidatura, e sem que os trabalhadores tivessem tempo de articular uma alternativa. Por isso, o ministro da saúde se apresentou em fevereiro de 2011, como único candidato à presidência do CNS.

Como afirmamos na época, essa era a pior alternativa que poderia acontecer não somente para o Conselho Nacional de Saúde. É o que de pior poderia acontecer para o “Controle Social” do SUS em todo o país. Como consequência, o CNS é hoje uma peça decorativa no cenário político do SUS no país. Durante todo esse “novo” período, não se conhece uma única manifestação pública do colegiado sobre as grandes polêmicas que marcaram o ano, que não seja uma ou outra moção aprovada em relação a um ou outro tema.

A lei que oficializou o papel das Comissões Intergestores, assim como o decreto que regulamenta a lei 8.080, tornam, de acordo com o entendimento de vários atores políticos e jurídicos, os Conselhos de Saúde meras figuras consultivas e "decorativas".

Sintomática e coincidentemente, durante esse período várias propostas e políticas estruturantes importantíssimas que merecem um debate aprofundado e, inclusive, alterações de conteúdo, foram colocadas em prática sem que o CNS sequer tomasse conhecimento. Num sentido inverso, há hoje no país um processo de retomada da presidência dos Conselhos pelos gestores, num movimento que fragiliza mais ainda colegiados que já estão atuando com imensas limitações nos rincões desse país.

Ao mesmo tempo e como reflexo direto desse momento político, o Conselho Nacional de Saúde não só não conseguiu avançar em aspectos que são cruciais na reestruturação dos Conselhos de Saúde, no debate que foi realizado sobre a atualização da Resolução 333, como é o caso da legitimidade de representação, mas aprovou retrocessos para nós inaceitáveis, em temas fundamentais que foram garantidos no decreto que regulamenta o CNS.

Por fim, a conclusão de que o Conselho Nacional de Saúde é vítima hoje de um forte processo de perda de autonomia e de independência, cujo retrato mais recente foi a última Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu no início de dezembro passado, tendo sido comprometida pela impossibilidade de um debate mais qualificado sobre os temas e teve o seu final manchado pela autoritária e equivocada proposta governamental de uma “Carta de Brasília”, que deixou no ar um forte odor de casuísmo e manipulação.

As próximas e decisivas eleições gerais do CNS

A Participação da Comunidade do SUS no Brasil enfrenta então um dos seus mais difíceis momentos, havendo a necessidade de uma grande articulação nacional dos movimentos sociais organizados e desorganizados, na perspectiva de superar esse contundente processo de esvaziamento e descaracterização que acomete o colegiado maior de Controle Social do SUS no país, e que é espelho e referência para os demais.

As eleições gerais que acontecerão no CNS em novembro próximo, assim como a definição do seu próximo presidente, não podem significar sob qualquer hipótese a manutenção do atual quadro de dependência política e de consequente falta de autonomia, de representatividade e legitimidade perante o SUS e o país. Isso significa dizer que seus membros integrantes e seja quem for o próximo condutor dos destinos políticos do Conselho Nacional de Saúde, não podem ser urdidos, muito menos eleitos, a partir das articulações de gabinetes oficiais fechados, método que deve definitivamente ficar no lixo da história do Sistema Único de Saúde.

Por isso a constatação da enorme responsabilidade que pesa sobre as costas dos representantes das entidades civis que pleitearão as vagas disponíveis no Conselho Nacional de Saúde. É impossível avançarmos na construção e consolidação do Sistema Único de Saúde sem que a militância envolvida direta ou indiretamente com as entidades constituídas consiga entender o seu papel, que passa necessariamente pela defesa intransigente dos princípios do SUS e da clareza de consciência dos limites que existem nas relações entre governo e movimento social.

*Enviado pelo próprio companheiro Francisco Batista Júnior, autor do texto


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