domingo, 14 de julho de 2013

"As Organizações Sociais (OSs) e o pensamento único', artigo de Renato Cardoso Nascimento

Publicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 14/07/2013

Organizações Sociais e o pensamento único

“As ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante.”

Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista

No dia 06 de junho último, participei de um seminário realizado em Goiânia, cujo tema foi: “As Organizações Sociais e as parcerias na área da Saúde: aprofundando o debate”. Nas linhas que seguem tenho a pretensão de tecer críticas construtivas sobre o evento. Não sobre a organização em si que, diga-se de passagem, foi a contento. A qualidade e o gabarito dos palestrantes também são indiscutíveis; todos, entre mestres e doutores, juristas e médicos, dominam com maestria o tema em comento. A entidade organizadora é idônea e possui credibilidade nos âmbitos local e nacional.

As questões que me deixaram surpreso e ensejam a crítica dizem respeito ao objeto e à condução do debate, e elas se inter-relacionam. Preliminarmente, registro que não houve debate, e sim uma DEFESA do modelo de gestão administrativa e financeira de unidades públicas de saúde por intermédio das chamadas Organizações Sociais - OSs (em alguns momentos, discutiu-se a participação do terceiro setor lato sensu nas atividades estatais). Debate pressupõe a exposição de argumentações contrárias e favoráveis sobre determinado assunto ou ideia, o que não ocorreu. Os palestrantes, de uma forma geral, limitaram-se a enaltecer a gestão do serviço de saúde pública por OSs e a desqualificar o serviço prestado diretamente pela administração pública.

Todos temos o direito de concordar com o referido modelo de gestão ou de discordar do mesmo; isto é legítimo, salutar e democrático. Todavia, a instituição organizadora deveria ter deixado claro qual seria o direcionamento dado à discussão, quando do anúncio do seminário. Pelo título, passaram a impressão de que haveria posicionamentos contrários e a favor, já que intuito era o de “aprofundar o debate”.


Não é razoável que os organizadores se arvorem de uma pretensa imparcialidade através da utilização de um título que não corresponderia à realidade explicitada no evento. Se a intenção era propiciar um momento de defesa do modelo de gestão, como foi de fato, os participantes deveriam ter sido informados que as posições contrárias não seriam trazidas à baila. A tomada de posição (contra ou a favor) não deve ser marginalizada.

Corolário da questão retro, também fui tomado de espanto pelo discurso praticamente unânime dos palestrantes, no sentido de que a gestão do serviço público de saúde por OSs seria a ÚNICA opção viável para o caos instalado na Saúde Pública brasileira. O salvacionismo deu sustentação ao evento do início ao fim. Chegou-se ao ponto de ser afirmado que já não mais havia sentido a discussão envolvendo questões constitucionais*, por exemplo. Ficou no ar o sentimento de que a repercussão social da introdução desse modelo de gestão em nossa sociedade e os interesses econômicos envolvidos são secundários e não devem interferir na implementação do referido modelo.

O modelo “mágico” de salvação da Saúde Pública foi encontrado. E este modelo de gestão já estaria consolidado na sociedade brasileira, sendo tal fato considerado um processo irreversível e não passível de contestação. Mais impressionante ainda: parecia que ele (o modelo) não tem defeitos (apesar de os próprios palestrantes elencarem alguns, como se verá mais ao final).

O pensamento único sobre um tema tão polêmico hoje, malgrado já decorridos, aproximadamente, 15 anos de promulgação do diploma legal que procedeu à criação das OSs, é deveras temerário. Ouso dizer que o posicionamento de alguns palestrantes, em defesa do modelo, foi tão exaltado que beirou ao autoritarismo intelectual. Tive a sensação que decretaram a falência definitiva da administração pública em Saúde, sem possibilidade de reabilitação.

A outra questão que causou perplexidade, ao longo do evento, foi a do discurso da desideologização do assunto. Houve momentos nos quais se mencionou que as manifestações contrárias ao modelo seriam perniciosas porque eivadas de ideologia**. Interessante é que, em outros momentos, foi deixado claro que a utilização do modelo de parceria do Estado com o setor privado em Saúde baseava-se em uma OPÇÃO (DECISÃO) política. Nesse sentido, nós, os participantes, fomos instados por alguns palestrantes a refletir sobre o tipo de Estado que gostaríamos de ter, uma vez que a modalidade administrativa aventada pressupõe um modelo estatal mais fiscalizador e gerenciador, e menos provedor.

Interessantes, ainda, foram alguns ataques à figura do Estado, sendo este tomado como ente apartado da sociedade da qual faz parte, e referenciado como se tivesse vida e vontade próprias e pairasse sobre nossas cabeças. Agir assim é encarar o Estado como realidade hipostasiada. Afirmar que o ente estatal é um “mau gestor” ou é “incompetente” não quer dizer, absolutamente, nada. Nunca é demais lembrar a lição do festejado professor Dalmo de Abreu Dallari (em sua obra “Elementos de teoria geral do Estado”), o qual diz que o “Estado é criação humana e instrumento de seres humanos, não sendo mau ou bom em si mesmo; ele será aquilo que forem as pessoas que o controlarem”.

Pelas argumentações anteriores, fica evidente o caráter ideológico da discussão. Desconsiderá-lo é conceber o modelo de gestão por OSs também como realidade hipostasiada, como algo desvinculado da realidade social da qual, necessariamente, faz parte, e o que é pior: desprovido de contextualização histórica.

Ora, se os próprios palestrantes (e algumas representações governamentais presentes) enfatizaram o caráter político na OPÇÃO do modelo de gestão, é pouco sensato desvincular o aspecto ideológico envolvido. O mandatário político do Poder Executivo que não concorda com o repasse da gestão para as OSs não o utilizará; o que concorda, atuará no sentido de sua consecução.

À guisa de conclusão, sugiro, humildemente, na condição de um simples usuário do Sistema Único de Saúde (SUS) e seu ferrenho defensor, que temas polêmicos como este sejam tratados levando-se em consideração a complexidade que apresentam. Quando alguém se propuser a realizar, efetivamente, um DEBATE, que faça uma organização no sentido de se convidar pessoas que apresentem as posições contrárias também. Um profissional como o médico Nelson Rodrigues dos Santos (Prof. Nelsão), dono de inegável experiência teórico-prática no assunto, uma verdadeira lenda viva na defesa do SUS no país e que, coincidentemente, esteve em Goiânia no dia posterior ao do evento (07/06/13), incrementaria de forma incomensurável a discussão. Na seara jurídica, a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro também contribuiria robustamente com o debate. Não menos valorosa seria a contribuição da professora Virginia Fontes, conhecedora dos aspectos históricos envolvendo a luta pela implantação do SUS no Brasil.

Minha preocupação reside no fato de se querer passar uma ideia de verdade absoluta (mesmo não concordando com o modelo de gestão proposto, sempre me disponho a debatê-lo, pois não considero “minha verdade” como única e inabalável). Dispensar-se-ia uma defesa tão qualificada (por vezes, exaltada), fosse o modelo defendido imprescindível, único e não houvesse concretamente outra saída (o que, sabidamente, não ocorre). Reitero minhas palavras anteriores: não se trata de criticar o fato de a entidade organizadora posicionar-se a favor do modelo de gestão por OSs. O equívoco cometido pela organização do evento foi o de dar contornos de unanimidade a uma problemática controversa.

Os próprios palestrantes reconheceram inúmeros “vácuos” procedimentais, tais como: controle insuficiente dos gestores privados; processos de qualificação e desqualificação para obtenção ou retirada do título de OS indefinidos; organização do chamamento público precária; controvérsias no que tange à vigência do Contrato de Gestão (e seus aditivos), à ampliação do objeto pactuado e à cessão de servidores públicos aos entes privados; utilização do modelo de gestão mencionado com o objetivo manifesto e rasteiro de fugir do regime jurídico-administrativo, das licitações públicas e dos concursos públicos (um palestrante foi enfático em dizer que, no Estado de São Paulo, não existirá mais a figura do concurso público para a área da Saúde Pública), apenas para exemplificar. Até a natureza jurídica do Contrato de Gestão é imprecisa – Convênio? Contrato Administrativo? Novo tipo de instrumento jurídico?

Enfim, tratar do tema como fato consumado merece uma advertência: faz mal à Saúde Pública.

*Ao que tudo indica, os palestrantes fazem questão de ignorar que ainda está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1.923 (ADIn 1923/DF). O relator à época, ex-ministro Ayres Britto, traz questões interessantes em seu voto, como, por exemplo, a que o programa proposto pela Lei no 9.637/98 (que é objeto de questionamento na referida ADIn, dispondo sobre a qualificação de entidades como Organizações Sociais e criando o Programa Nacional de Publicização) é, na verdade, um programa de PRIVATIZAÇÃO, e não de publicização.

**Devido à imprecisão em torno do conceito de ideologia, valho-me, neste texto, da definição do jurista Sérgio Resende de Barros, que diz: “Ideologia é a distorção inconsciente da realidade por efeito do condicionamento social do pensamento” (em sua obra “Contribuição dialética para o constitucionalismo”). Tal definição tem um viés claramente marxiano, o que demonstra, de maneira inequívoca e com uma clareza solar, meu posicionamento ideológico acerca da temática abordada, pois não me eximo de expô-lo. Por sua vez, esta conceituação se afasta da primeira definição dada ao termo por Desttut de Tracy em 1801 (em sua obra “Elementos de ideologia”).

Goiânia, 08 de junho de 2013.

RENATO CARDOSO NASCIMENTO é 1o secretário do Conselho Local de Saúde do Hospital Geral de Goiânia (HGG) e usuário do Sistema Único de Saúde (SUS)

*Publicado no blog da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde em 14/07/2013

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